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Alertas ignorados, seca e eleições: a receita ideal para o desastre hídrico

Advertências sobre a crise da água em São Paulo se repetem há mais de uma década

María Martín
Com demanda em alta, funcionário de mercado organiza galões de água.
Com demanda em alta, funcionário de mercado organiza galões de água.NACHO DOCE (REUTERS)

Um cenário com toques apocalípticos paira sobre a cidade mais populosa do Brasil diante a possibilidade dos reservatórios de água zerarem. Há quem culpe São Pedro. As chuvas abaixo do esperado desde 2011 têm sido a explicação das autoridades do Estado e da Sabesp para justificar a pior crise hídrica nos últimos 84 anos, mas os alertas de que São Paulo caminhava em direção a um quilométrico deserto vêm pipocando desde 2001.

Em julho daquele ano, com as chuvas também abaixo do esperado, o secretario de Recursos Hídricos, Antônio Carlos de Mendes Thame, já reconhecia, em uma entrevista a Folha de S.Paulo, a possibilidade um colapso no Cantareira, que operava com 32% da sua capacidade – hoje beira 5% usando a segunda cota de volume morto. Na época, a Sabesp também tentou minimizar a crise e orientou os funcionários para desviar a atenção do Sistema, que hoje abastece 14,5 milhões na Grande São Paulo e em 62 cidades do interior do Estado.

Em 2003, com Geraldo Alckmin como governador, e com o Cantareira e o Alto Cotia beirando o limites mínimos de capacidade, a mesma Folha de S.Paulo anunciava: “Por limites naturais e falta de políticas eficientes, São Paulo só atende demanda por água até 2010”. Na mesma época foi estabelecido um rodízio de dois meses que afetou 440.000 pessoas. Nada de novo, pois a medida já tinha sido adotada com diferente intensidade em 1969, 1985, 2000 e 2001.

Se existia alguma dúvida da capacidade limitada dos reservatórios de São Paulo, em 2009 o Governo de José Serra (PSDB) foi informado detalhadamente das fragilidades dos sistemas e de o risco real de uma “guerra de água” entre algumas regiões, “motivada pelo aumento da demanda em um ano atípico de chuvas”. Em um relatório encomendado pela Secretaria de Meio Ambiente, a contribuição de mais de 200 especialistas perfilou um cenário de crise de abastecimento na bacia do Alto Tietê na primeira década do século XXI que em 2015 atingiria a Bacia dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), a doadora do Sistema Cantareira. "Ignoraram o sinal dessa crise. Aumentaram o risco [de colapso] porque incorporaram um volume que antes não era considerado útil e aumentaram a vazão de 33 para 36m3/s. Quando você tem político na gestão e técnicos que não têm coragem de alertar que isso não vai dar certo, a culpa é conjunta. Agora a situação é tão grave que estamos diante de um desabastecimento de água e energia", lamenta o geógrafo Antonio Carlos Zuffo, da Unicamp, que acompanha a situação dos recursos hídricos do Estado há mais de uma década.

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Raul Sturari, coordenador do projeto e diretor de projeções do Instituto Sagres de pesquisa, reconhece que “chutaram” ao colocar 2015 como cenário da crise, mas insiste em que os indícios do que se avizinhava eram muito claros. “Não precisa ter uma bola de cristal para saber que existe um ciclo de precipitações. Nós avisamos sobre o aumento da população, sobre a necessidade de implantar sistemas de reuso, principalmente do esgoto, de colocar outros pontos de captação de água em regiões adjacentes aos reservatórios para não ser tão dependentes dos sistemas atuais...”, afirma Sturari. A pesquisa levantou outra questão além do desabastecimento nas cidades que hoje é também realidade. “Alguns especialistas já previam o que está se configurando agora na agropecuária, que iria sofrer a falta de água. Quando nós conversamos sobre isso, estávamos em 2008”, observa Sturari.

Chegado ao ponto onde a crise hídrica já era um realidade, no ano passado, ela foi negada e minimizada. “A Sabesp sempre esperou que acontecesse o melhor, não se preparou para a pior das situações que é a que temos hoje”, lamenta o engenheiro civil e sanitarista Roberto Kachel, que trabalhou por 34 anos na companhia. “O maior problema foi a gestão a curto prazo a partir de 2014. A Sabesp retirou muita mais água do que devia das represas, adotando cenários mais otimistas que reais”, observa Kachel, que afirma que essa gestão levou a um “esgotamento prematuro e desnecessário do Cantareira”.

“Observando as médias de vazões afluentes e retiradas e comparando-as às finanças de um indivíduo qualquer, podemos afirmar, a grosso modo, que se trata de alguém que recebe um salário médio anual de 9.000 reais mensais e gasta 24.000 por mês. É óbvio que uma situação desta não se sustenta”, ilustra Kachel. “A Sabesp não aplicou, a partir de setembro de 2013 a regra especificada pelo Modelo Operacional do Sistema Cantareira, de acordo com a Outorga de 2004, retirando vazões acima das indicadas pelo critério da Curva de Aversão a Risco”.

Gráfico que mostra as médias de vazões afluentes (entrantes) e retiradas no Sistema Cantareira em 2014. Fonte: Roberto Kachel
Gráfico que mostra as médias de vazões afluentes (entrantes) e retiradas no Sistema Cantareira em 2014. Fonte: Roberto Kachel

Com as chuvas muito por debaixo da série histórica, a Sabesp elaborou no ano passado um plano de contingência, chamado “Rodízio do Sistema Cantareira 2014”, onde se cogitavam cortes no abastecimento de 48 horas por cada dia com água – a alternativa hoje seria muito mais severa com cinco dias sem água por dois com. O governador, então imerso na pré-campanha eleitoral, que hoje sim delega nos critérios técnicos da Sabesp a implementação de um rodízio, vetou aquele plano e a Sabesp continuou retirando mais água da Cantareira do que devia.

Kachel fez uma simulação da situação na que estaria hoje o Cantareira se esse rodízio e a redução da captação de água tivessem sido adotados no ano passado como foi cogitado pela própria Sabesp. Segundo o professor, hoje estaríamos ainda com 60 milhões de metros cúbicos do primeiro volume morto que acabaria só em janeiro do ano que vem. O caminho seguido foi outro e hoje a segunda cota de volume morto deve acabar em abril.

A crise para os especialistas ainda deve durar alguns anos. O relatório entregue ao Governo de José Serra em 2009 esboçou um cenário ainda mais crítico daqui a três anos: “o ano de 2018 significou um marco na história do uso da água no Estado de São Paulo e os problemas verificados podem ser considerados uma continuação daqueles da crise de 2015. Em determinadas regiões, em função do uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes, as águas superficiais e subterrâneas foram afetadas, comprometendo o abastecimento público de alguns municípios. Ações judiciais se multiplicaram, no rastro das manifestações populares que reivindicaram o abastecimento público em detrimento do agronegócio”.

O coordenador do levantamento lamenta que as pessoas falem que falta planejamento no Brasil: “Não é bem assim, o que falta é gestão. Se você vê há um estudo como este feito por um Governo que se mantém desde então significa a preocupação pelo planejamento já existia, o que faltou foi uma atitude política de implementação de medidas e um investimento em infraestrutura”.

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