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Voltar a ser pobre na Venezuela

A inflação galopante leva milhares de cidadãos a cair na pobreza. Os programas oficiais de ajuda não são suficientes

Fila em frente a um supermercado público em Caracas.
Fila em frente a um supermercado público em Caracas.Jorge Silva (Reuters)

Com um déficit orçamentário estimado em 20% do Produto Interno Bruto (PIB) e com os preços do petróleo ameaçando permanecer a menos de 50 dólares por barril nos próximos meses, o ano de 2015 se apresenta para a Venezuela como um ano de perspectivas catastróficas. Mas em um momento em que ainda não se concretizaram as dificuldades previstas para este annus horribilis da economia venezuelana, o relatório que acaba de ser publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que estabelece com dados de 2013 que a pobreza está aumentando na Venezuela, representa um revés para o regime bolivariano.

O órgão da ONU destaca a Venezuela como o país com o pior desempenho em uma região caracterizada pelo estancamento do crescimento econômico e, por conseguinte, da mobilidade social. O relatório atinge fortemente o discurso do regime bolivariano, que, durante os governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, legitimou seus atos políticos através da invocação constante de seus êxitos, imaginários ou reais, no combate contra a exclusão e a pobreza. Os porta-vozes governamentais sistematicamente se defendem com reconhecimentos de entidades técnicas da ONU, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) ou a própria Cepal, para dar credibilidade a suas vitórias.

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O documento da Cepal sugere que a ascensão dos pobres na Venezuela foi superficial e volátil, sujeita ao vai-e-vem dos rendimentos com o petróleo e da vontade do Estado de repartir os lucros eventualmente produzidos.

Algo semelhante foi detectado pelo estudo “Condições de vida da população venezuelana”, cujos resultados foram divulgados na quinta-feira, em Caracas. Trata-se de um projeto conjunto da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB), particular, e de duas instituições estatais, as Universidades Central da Venezuela (UCV) e Simón Bolívar (USB). Através de uma enquete realizada em residências, o estudo se propôs a avaliar o acesso da população a moradia, serviços de saúde e educação, postos de trabalho, programas sociais e alimentação.

As projeções do estudo – cujo trabalho de campo foi realizado entre agosto e setembro de 2014 – permitem afirmar que pouco mais de 3,5 milhões de lares venezuelanos (de um total de 7,2 milhões de famílias) são pobres. E, dentre eles, 1,2 milhão subsiste na pobreza extrema, entendida como a situação de grupos familiares cuja renda não é suficiente para garantir a cada um de seus integrantes a ingestão de 2.200 calorias por dia, nem para custear serviços básicos como água e eletricidade.

Os números indicam que o nível de pobreza atual – 48,4% da população – é levemente superior ao registrado em 1998, de 45%. Além disso, o estudo alerta que, do total de pobres, um em cada três é novo no grupo: a entrada deles nessa camada se deve aos efeitos da inflação. Segundo os dados oficiais, a Venezuela encerrou 2014 com um aumento anual dos preços ao consumidor da ordem de 64%, a taxa mais alta do mundo pelo segundo ano consecutivo.

Quase metade dos beneficiários dos planos de assistência social do Governo não precisa deles

Esses novos pobres poderiam sair “com relativa facilidade” de sua situação se a economia tivesse um desempenho melhor, segundo o sociólogo Luis Pedro España, membro do Instituto de Pesquisas Econômicas da UCAB e o principal responsável pelo estudo. Mas, dadas as perspectivas para este ano, corre-se o risco certo de que esses pobres conjunturais acabem engrossando as fileiras da pobreza crônica e estrutural. “A Venezuela entrou novamente em um ciclo de aumento da pobreza, exatamente como se viveu em momentos de ajustes econômicos, como em 1989 e em 1996, ou de comoção social, como em 1992 e 2002”, afirmou España durante a apresentação da pesquisa.

Os programas de assistência social do Governo (chamados de “missões”), que em meio à crise poderiam servir para atenuar o empobrecimento, atendem apenas 10% das famílias pesquisadas. E o que é pior: o estudo determinou que quase metade dos beneficiários desses programas não é pobre. “Isso nos mostra que as missões não são abrangentes nem dão proteção social efetiva, porque não estão sendo concentradas no setor mais vulnerável da população”, ressaltou o sociólogo.

Até agora, as missões se mostraram como meios eficientes de controle social – por causa de suas bases de dados -, além de receberem investimentos em massa e, definitivamente, servirem como um poderoso argumento para se ganhar eleições. Mas agora, chegada a era das vacas magras, apenas uma reorganização poderia transformar as missões em verdadeiros paliativos contra a crise.

Entretanto não parece que o Governo de Maduro, acossado por dificuldades em diferentes frentes, vá se animar a assumir o custo político dessa restruturação, que significaria retirar as vantagens das missões de uma parte de seus beneficiários e, ao mesmo tempo, desestimular as expectativas gerais da população de se tornarem receptores dos favores clientelistas. O estudo determinou que 57% das pessoas que não recebem os benefícios sociais desejam receber.

O sociólogo España destaca que tudo isso mostra que durante os últimos 15 anos não houve na Venezuela um programa para combater a pobreza de maneira estrutural, mas apenas uma campanha de distribuição dos lucros do petróleo com um sentido assistencialista. “É preciso criar um plano autêntico de superação da pobreza, baseado no esforço e na produtividade”.

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