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O terrorista discreto

Chérif Kouachi, descrito pelos vizinhos como ‘amável’, vivia de benefícios sociais num bairro com muitos imigrantes na periferia de Paris

Álex Vicente
Grupo de muçulmanos reza em Gennevilliers em protesto pela proibição da oração na rua em 2011.
Grupo de muçulmanos reza em Gennevilliers em protesto pela proibição da oração na rua em 2011.yaghobzadeh rafael (cordon press)

Para ir a Gennevilliers é preciso tomar o metro até chegar à outra margem do Sena, ali onde os elegantes edifícios do século XIX se transformaram em lúgubres torres de concreto. Na divisa entre esse subúrbio e Asniers, ambos encostados em Paris e com perfil de cidade-dormitório, Chérif Kouachi, abatido na sexta-feira como suspeito do ataque ao semanário Charlie Hebdo, vivia com sua mulher em um apartamento da rua Basly, situado em um edifício de tijolos com certa distinção. A residência se destaca entre moradias um pouco deterioradas, localizadas às margens de uma barulhenta avenida com ar de autopista. Pela rua não se vê uma alma. É sábado pela tarde, mas as lojas estão fechadas, bem como a pizzaria e a tabacaria.

O sobrenome do terrorista continuava na caixa de correios: ocupava o apartamento 143, no quarto andar. Chérif Kouachi vivia graças à ajuda do Estado –recebia o valor mínimo do benefício social, de 420 euros mensais, em média – e trabalhava ocasionalmente em um supermercado e vendendo objetos religiosos em mercadinhos.

“Parecia um jovem normal, embora todos pareçam ser”, diz uma vizinha

Seus vizinhos o descrevem como “amável e discreto”, sem o perfil de um jihadista. “Parecia um jovem normal, embora todos pareçam ser”, disse uma moradora de um dos edifícios mais adiante. Pede que não seja divulgado o seu nome. “É preciso aumentar as precauções. É um bairro muito humilde e sabemos que acontecem coisas. Mas é preciso dizer que a convivência é relativamente pacífica. Nos 15 anos em que estou neste bairro, só ouvi tiros uma vez”, afirma a mulher. Jura que é uma boa média.

O panorama é o habitual em muitos municípios da periferia parisiense, receptáculos de imigração maciça a partir dos anos 60 e 70. Em Gennevilliers, mais da metade dos menores de 18 anos são de origem estrangeira. “Os pais não eram como os filhos”, afirma Robert, taxista aposentado que vive a duas ruas do lugar. “Eram operários sem meios, mas com dignidade, que foram amontoados em poucos metros quadrados.” Os filhos cresceram depois do fim das chamadas “trinta gloriosas”, as três décadas de enorme crescimento que a França vivenciou até os anos 80. Depois disso, o contexto do país mudou.

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Chérif e seu irmão Said frequentaram a mesquita de Gennevilliers. O imã desse templo, Rachid Mouay, é o único que se recorda do radicalismo dos irmãos, que certa vez abandonaram uma oração quando ele incitou os presentes a participar das eleições. “Said manifestou seu desacordo e saiu irritado”, relatou a Le Figaro. “Quando alguém pratica e ensina um Islã moderado, que é o Islã real, é considerado pelos extremistas um infiel à religião”, acrescentou.

Seu compromisso com o islamismo radical nasceu longe de Gennevilliers –esses complexos de prédios típico das cidades de subúrbio são chamados de cités pelos franceses. A de Curial-Cambrai se encontra dentro dos limites de Paris, embora não disponha de uma paisagem melhor. Dezessete torres praticamente idênticas configuram uma cidade labiríntica em miniatura, embora sem mais serviços à população do que um par de creches e um centro social que hoje está fechado. Há uma década os irmãos Kouachi frequentaram o lugar, impermeável ao aburguesamento crescente do 19º distrito parisiense. Formavam parte da rede jihadista dos Buttes-Chaumont, que pegou o nome emprestado do majestoso jardim público vizinho, construído pelo barãoHaussmann em 1867 no nordeste de Paris.

O grupo jihadista se formou perto de um majestoso parque do bairro

Curial-Cambrai faz parte de outro mundo. “É um lugar duro, com muitos muçulmanos sem recursos”, diz Isabelle, uma moradora que chegou há três anos. “Mas melhorou muito. Ouvi que antes havia rezas nos porões e até mesmo violações em grupo.”

Morad, jovem de origem argelina, passa a tarde sentado no pátio de um dos edifícios. Diz ter ouvido falar dos irmãos Kouachi por “amigos de amigos”. “Presume-se que circulavam pelo bairro”, diz. “Acho ruim que os tenham matado. O que fizeram foi errado, mas não pior do que o que outros fazem. Em outros países do mundo morrem dezenas todos os dias e ninguém diz nada.”

Liliane, auxiliar de uma clínica e uma das poucas mulheres brancas que se vê no lugar –é de origem francesa –, vive no complexo desde 1992. “Os jovens são amáveis conosco, mas não sabemos o que fazem quando não os vemos. O risco zero não existe”, argumenta. Diz que esta semana há algo que mudou. “Quando vejo uma vizinha com o véu integral, eu me surpreendo tendo medo. E não gosto de sentir isso. Eu me pergunto quem estará debaixo desse véu. Sei que há um ser humano, mas de que tipo?”

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