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Al Qaeda recupera protagonismo no terrorismo global

A rede representa maior ameaça a Ocidente do que califado do Estado Islâmico

ÓSCAR GUTIÉRREZ
Policial francês vigia entrada de mesquita em Paris.
Policial francês vigia entrada de mesquita em Paris.Y. Boudlal (Reuters)

Abu Jarir al Shamali relata no último número da revista Dabiq, veículo de propaganda do Estado Islâmico (EI), que quando entrou em terras do Waziristão, na fronteira entre o Paquistão e Afeganistão, depois da morte de Osama bin Laden, o que viu não era o que esperava: “Pensava que os mujahideen [combatentes em defesa do Islã] iam ser os que tomariam as decisões e que asharía [lei islâmica] seria aplicada por eles. Com tristeza vi que o que imperava ali era a lei tribal (...) Os Exércitos paquistaneses de apóstatas cobriam cada colina e montanha, vigiando cada grupo de pessoas, vila ou cidade”.

Intitulado Al Qaeda no Waziristão, Al Shamali traça ao longo do texto uma das críticas mais detalhadas de uma organização jihadista contra o que foi realizado pela Al Qaeda, que chegou a ser um dos santuários do grupo quando Bin Laden era vivo. O porta-voz do EI lança um dardo envenenado inclusive contra o líder da rede terrorista —e também contra o mulá Omar— por não perseguir com veemência a instauração de um califado.

A células do Magreb e Iêmen apoiam o Estado Islâmico na Síria e Iraque

A narração de Al Shamali dá munição à competição pela liderança da jihad global entre a Al Qaeda e a organização que proclamou o califado entre a Síria e o Iraque em junho do ano passado, sob as ordens do iraquiano Abubaker al Bagdadi. O padrão dos autores do atentado contra o Charlie Hebdo e seu passado vinculado à organização de Bin Laden reforçam a ideia de analistas e serviços de inteligência familiarizados com o fenômeno jihadista: a Al Qaeda ainda é a principal ameaça para o Ocidente, por sua experiência e capacidade para organizar comandos dispostos a cometer atentados.

A sombra de Al Aulaki

Pouco mais de um ano antes de sua morte, o clérigo norte-americano de origem iemenita Anuar al Aulaki escreveu: "Lutaremos [pelo profeta], instigaremos, lançaremos bombas e assassinaremos [por ele]". Al Aulaki fazia assim um chamado na revista Inspire, da Al Qaeda, para adotar represálias contra a publicação de caricaturas de Maomé.

Em setembro de 2011, um avião norte-americano matou, nas montanhas do Iêmen, o clérigo acusado de recrutar jovens para a jihad. Segundo fontes do Iêmen citadas por vários veículos na imprensa na sexta-feira, Al Aulaki se encontrou naquele ano com Said Kouachi, suspeito do ataque contra o jornal francês Charlie Hebdo. Al Aulaki e seu filho Abdulrahman, atingido em outro bombardeio uma semana depois da morte do pai, se tornaram dois dos símbolos mais usados pela propaganda jihadista.

Apesar de tanto a facção do Iemên da Al Qaeda na Península Arábica (AQAP, na sigla em inglês) quanto a Al Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI) terem incentivado em meados do ano passado o apoio à luta dos mujahideen, que defendiam o califado de Al Bagdadi, a violência indiscriminada no Iraque e na Síria e as ambições do califa levaram os dois grupos a proclamar a “ilegitimidade” do Estado Islâmico em dezembro. A gota d’água foi um comunicado divulgado por Al Bagdadi no qual estendia seu califado ao Iêmen, onde a AQAP mantém uma ofensiva territorial e brutal contra o movimento xiita Houthi no sul—dezenas de pessoas morreram em janeiro devido a atentados a bomba.

Um membro da AQAP assumiu a autoria do atentado em Paris em uma nota enviada ao jornalista norte-americano Jeremy Scahill, um dos maiores especialistas sobre a rede terrorista e autor do documentário Dirty Wars. “A liderança da #AQAP”, diz o texto do comunicado, “comandou a operação e escolheu seu alvo com cuidado para vingar a honra do profeta”.

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Um atentado marcado a fogo na agenda da Al Qaeda

A rivalidade entre o EI e a Al Qaeda surgiu justamente nas raízes do grupo hoje liderado por Al Bagdadi e na figura daquele que foi sua referência, o jordano Abu Musab al Zarqaui, morto durante um ataque aéreo dos Estados Unidos em junho de 2006, no sul do Iraque. Analisando a propaganda do EI e de seus simpatizantes, Al Zarqaui é ainda hoje uma das figuras fundamentais para os jihadistas leais ao califado. Ainda que Al Zarqaui, também conhecido por sua brutalidade, tenha morrido como líder da célula iraquiana da Al Qaeda, os laços com a cúpula governada por Bin Laden eram frágeis. As informações sobre o jordaniano de origem palestina indicam que seus alvos eram muito mais regionais do que os de Bin Laden, focado em atacar o Ocidente e, especialmente, os Estados Unidos.

Na prática, tanto a AQAP quanto a AQMI, as duas células mais ativas da rede terrorista hoje comandada pelo egípcio Ayman al Zawahiri, sempre mantiveram em suas agendas atentados contra alvos no Ocidente, enquanto o EI continua sua cruzada para alistar jihadistas que engordem seu califado. A AQAP, sob o comando de Nasser al Wuhayshi, do Iêmen, planejou a tentativa de atentado em 2009 em um voo de Amsterdã a Detroit através do nigeriano Umar Faruk. O explosivo escondido em sua roupa de baixo não funcionou. Um ano depois, uma ação da Arábia Saudita conseguiu desmantelar uma conspiração que pretendia levar bombas do Iêmen para os EUA em dois aviões. Em 2013 e depois de várias mensagens contra as caricaturas sobre Maomé, a rede do Iêmen divulgou em sua revista Inspireum cartaz “Vivo ou Morto”. Nele aparecia a foto de Stephane Charbonnier, Charb, diretor do Charlie Hebdo.

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