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Direita dos EUA redefine sua ideologia ao assumir mais poder

Novo “reformismo conservador” incentiva republicanos a abordar pobreza e desigualdades

Marc Bassets
O porta-voz do Congresso dos EUA, o republicano John Boehner, com Obama em novembro.
O porta-voz do Congresso dos EUA, o republicano John Boehner, com Obama em novembro.D. BRACK (AP)

Os últimos seis anos transformaram o Partido Republicano. São os anos do democrata Barack Obama na Casa Branca, mas também do ápice do movimento conservador e populista do Tea Party. Os republicanos assumirão na terça-feira o controle do Congresso dos Estados Unidos em plena discussão sobre sua orientação política.

Um grupo de intelectuais denominado conservadores reformistas –muitos deles com menos de 40 anos e procedentes do meio acadêmico– é o motor do rearmamento ideológico da direita.

Os novos republicanos, abertos a questões como a pobreza e as desigualdades, tradicionalmente um monopólio dos democratas, se preparam para governar o Senado e a Câmara dos Representantes, a partir desta semana, e os Estados Unidos, quando Obama deixar o poder depois das eleições presidenciais de 2016.

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As eleições legislativas de novembro deram aos republicanos a maioria no Senado. Desde 2011, eram majoritários na Câmara dos Representantes. Na terça-feira, quando se constituir o 114º Congresso, os republicanos ocuparão seu maior número de cadeiras na Câmara dos Representantes desde 1928.

Desde que o antecessor de Obama, George W. Bush, ganhou sua segunda eleição presidencial, em 2004, o Partido Republicano não tinha sido tão poderoso. Mas o Partido Republicano de 2014 é diferente do de Bush.

Entre a mudança e a manutenção do ‘status quo’

M. B., Washington

Yuval Levin, o ideólogo da nova direita norte-americana, é o herdeiro de uma rica tradição. A National Affairs –a sisuda publicação trimestral que ele dirige– é a sucessora de The Public Interest, a revista de referência dos neoconservadores. A partir dos anos 60, essa plataforma serviu a intelectuais como Irving Kristol, o papa do neoconservadorismo, ou o sociólogo Daniel Bell para influir no debate público. Levin tem sido chamado de o "pequeno Kristol".

Levin, com experiência na Casa Branca de George W. Bush, sabe delimitar as querelas políticas em uma perspectiva filosófica que transcende as pequenas disputas em Washington. No ensaio The Great Debate, fruto de seu período no Comitê sobre o Pensamento Social, da Universidade de Chicago, argumenta que os atuais debates entre direita e esquerda, entre conservadores e progressistas, entre republicanos e democratas, foram forjados entre 1770 e 1800.

Tudo começou na disputa entre os políticos e pensadores britânicos Edmund Burke e Thomas Paine, um reflexo da tensão entre mudança e preservação do status quo. Burke, autor da crítica mais demolidora da Revolução Francesa, era alérgico às mudanças bruscas e à ideia de que a humanidade poderia começar do zero. Defendia a cautela e o progresso paulatino. Ao contrário de Paine, que se entusiasmou com a Revolução.

“Burke reflete uma visão da sociedade fundamentada na tradição, que respeita as instituições estabelecidas porque elas possuem uma maior sabedoria do que pode alcançar nossa destreza técnica”, diz. A de Burke é a tradição da direita, embora políticos como o presidente Barack Obama – um político cauteloso e partidário dos pequenos passos– tenham se declarado burkianos.

E, embora Levin identifique Paine com a esquerda, a direita dos EUA é painiana em seu afã transformador: a invasão do Iraque ou o desejo em alguns setores de abolir o Estado do bem-estar social retomam a retórica revolucionária do século XVIII. “Nos Estados Unidos”, diz Levin, “os conservadores conservam uma tradição que começou na revolução”.

“Sofreu vários abalos. Não é o mesmo partido do final dos anos de Bush”, diz Yuval Levin, diretor da revista National Affairs e cabeça pensante dos conservadores reformistas. “Na política externa é muito mais cauteloso quanto às ambições agressivas e ao envolvimento nos assuntos internos de outros países. Na política interna é um partido muito mais conservador, muito mais comprometido com um papel reduzido do Estado e com gastos públicos inferiores, e mais preocupado com o déficit.”

Os EUA são um país onde a política é indissociável das ideias: afinal de contas, foi fundado com base na filosofia do iluminismo. Algumas das iniciativas que deixaram mais marcas foram gestadas em círculos de intelectuais e economistas.

Dificilmente teria existido a revolução econômica de Ronald Reagan sem as propostas e teorias do Instituto Americano do Empreendimento (AEI, na sigla em inglês), da Fundação Heritage e do Nobel de Economia Milton Friedman. E a invasão do Iraque em 2003 não se explicaria sem os neoconservadores, o movimento que tem sua origem em uma elite de intelectuais esquerdistas que nos anos 60 e 70 se distanciou do Partido Democrata.

Os anos de Obama foram para os conservadores uma travessia do deserto que os forçou a reformular suas bases ideológicas. O Tea Party atuou como combustível para uma direita deprimida, mas fracassou na hora de apresentar alternativas. Transformou os republicanos no partido do não: eficaz na hora de torpedear qualquer projeto do presidente Obama, mas inútil na hora de governar.

“Parte do que fazemos”, explica Levin, “é conseguir que os conservadores falem de temas que costumávamos deixar para a esquerda”

Agora chega o reformismo conservador, que não rejeita o Tea Party, mas o corrige. Yuval Levin, nascido há 37 anos em Israel e emigrado para os EUA quando criança, se declara “fã” do Tea Party, mas afirma que tanto esse movimento como o Partido Republicano “se concentraram demais no que tinha de ser freado e não no que tinha de ser feito”.

No início de uma conversa recente em sua sala da National Affairs, Levin deixou claro não acreditar que a política dos Estados Unidos se resuma à oposição entre capitalismo e socialismo. Pode parecer uma obviedade, mas não é: uma das mensagens recorrentes do Tea Party tem sido que Obama é um socialista e até mesmo comunista. “Os americanos, de esquerda e de direita, são todos capitalistas”, diz Levin.

Levin –autor de The Great Debate: Edmind Burke, Thomas Paine, and the Birth of Righ and Left, um ensaio que traça a origem da divisão entre esquerda e direita nos pensadores e políticos britânicos do século XVIII Edmund Burke e Tomas Paine – distancia-se de Ronald Reagan, o santo padroeiro da direita norte-americana. Sua geração se libertou da nostalgia do presidente que dizia que “as palavras mais aterrorizantes da língua inglesa são: ‘Sou do Governo' e 'Estou aqui para ajudar’”.

O legado de Reagan, lamenta o intelectual conservador, continua definindo as propostas republicanas em política fiscal, que proíbem qualquer aumento de impostos e protegem os empreendedores e os mais ricos, como origem da riqueza que depois se expande ao restante da sociedade. “Falamos demais de donos de empresas, de impostos sobre as empresas e de impostos progressivos sobre a renda que afetam os mais ricos, e não falamos o suficiente dos impostos que afetam as famílias de classe média”, diz Levin.

Para algumas figuras emergentes do Partido Republicano, intelectuais como Levin ou Arthur Brooks, o presidente da AEI, são interlocutores frequentes. A National Affairs é leitura obrigatória no Capitólio. “Sem dúvida, é importante e influente”, disse o senador Mike Lee a The New York Times, aludindo a Levin. Os planos de Paul Ryan, congressista e candidato à vice-presidência em 2012, para combater a pobreza respondem a esse novo espírito.

Nem tudo o que dizem e escrevem Levin e seus colegas intelectuais se traduz em propostas do Partido Republicano, mas eles são hoje uma inspiração: o disco rígido ideológico.

“Parte do que fazemos”, explica Levin, “é conseguir que os conservadores falem de temas que costumávamos deixar para a esquerda”. Ele cita a educação, a saúde e a pobreza.

Levin, como Brooks, se esforça em recuperar uma retórica que parecia propriedade da esquerda. Insistem na dimensão moral, espiritual da política. Brooks recebeu o Dalai Lama no AEI, templo do conservadorismo norte-americano. Levin lamenta o caráter economicista e utilitário dos debates em Washington.

“Não falamos o suficiente na vida pública das virtudes que permitem uma vida florescente”, diz. Instituições como a família e a religião são fundamentais nessa visão arraigada nos valores da direita.

A política é uma luta de poder, e a batalha dos próximos dois anos será dupla: entre o Partido Republicano, majoritário no Congresso, e Obama; e entre candidatos e facções republicanas pela nomeação às presidenciais de 2016.

Como governar a partir de terça-feira no Congresso? E na Casa Branca? Aí entram em jogo as ideias: de Lincoln a Reagan, de Roosevelt a Johnson, elas transformaram os Estados Unidos. Os perfis da próxima batalha ideológica começam a ser delineados.

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