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Os presos invisíveis do Rio de Janeiro

Cerca de 4.000 detentos não existem para o Estado. Sem certidão de nascimento nem RG, reinserção é difícil em um país cheio de burocracia

Uma detenta em uma prisão do Rio, em 2011.
Uma detenta em uma prisão do Rio, em 2011.V. Almeida (AFP)

As cifras variam muito, mas se calcula que entre 50.000 e 100.000 crianças vivam nas ruas do Brasil.  Para a imensa maioria, isso significa – além de todo tipo de penalidade imaginável – a ausência de um documento de identidade: elas não existem para o Estado. As estatísticas públicas tendem a minimizar o problema, que, no entanto, perdura até a idade adulta. Segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de Rio do Janeiro (SEAP), 10% dos detentos que entram nas prisões do Estado não possuem documentos de identidade nem certidão de nascimento. Só saíram da invisibilidade burocrática ao cometerem algum delito. São 4.000 pessoas que integram o sistema apenas graças ao seu prontuário carcerário: seu único registro legal é aquele onde tocaram piano, ou seja, deixaram as impressões digitais, na identificação feita após a detenção.

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Ricardo (nome fictício) é um ex-preso, hoje em liberdade condicional, que administra uma pequena empresa de quentinhas (marmitas) no bairro carioca de Madureira. Porta uma tornozeleira eletrônica que registra seus movimentos. Durante anos trabalhou com agentes carcerários e policiais na 58ª delegacia de polícia do Rio, beneficiando-se de um programa de redução de pena, na razão de um dia a menos de cadeia a cada três trabalhados. Era o encarregado de fichar os presos que chegavam. “Entravam presos sem nenhum dado, nenhuma carteira, nada… Não eram visitados por familiares nem recebiam comida [de pessoas de fora] nem qualquer tipo de presente.” Entretanto, segundo ele, havia fraude em alguns desses casos. “Havia vários casos de detentos que ocultavam sua verdadeira identidade para escapar de delitos anteriores, cometidos às vezes em outros Estados, e assim reduzir sua pena”, relata.

“Muitos deles nasceram e cresceram na rua”, diz um porta-voz da Secretaria de Direitos Humanos do Rio de Janeiro. “É praticamente impossível para eles escapar do círculo delitivo.” Segundo o governo  A falta de certidão de nascimento barra o acesso ao documento de identidade, o que por sua vez exclui qualquer possibilidade de obtenção de outros certificados habituais – como a carteira de trabalho e o título de eleitor. Dos integrantes desse grupo, portanto, são conhecidas apenas as características físicas. “Algumas histórias são dramáticas. Tentam voltar reabilitados à vida civil, conseguir um trabalho, endireitar, mas nem sequer recebem um documento que os identifique como cidadãos”, acrescenta o porta-voz.

A secretaria de Administração Penitenciária afirma que os 3.988 detentos atuais sem identificação civil não têm relação com delitos anteriores. No Tribunal de Justiça do Estado do Rio, que promove um projeto para a erradicação do sub-registro civil, estima-se que o número seja mais elevado. “E em outros Estados brasileiros o percentual poderia ser ainda maior”, afirma essa fonte. “O Rio está mais adiantado que muitas outras administrações nesse trabalho de identificação e regularização.”

A concessão de documentos civis a um cidadão adulto que sai da prisão é complicada e em vários Estados se fazem forças-tarefas, os mutirões, para tentar driblar as dificuldades. Trata-se de um processo no qual participam diversas instituições e que exige entrevistas, verificação de diversos documentos e contatos com familiares, “quando existem”, como recorda o porta-voz. A SEAP reconhece o problema e afirma fazer “um trabalho de regularização mediante um projeto que procura mapear, identificar e desencadear ações em colaboração com outros órgãos”, como o DETRAN, responsável pela carteira de habilitação para dirigir, a Associação de Registradores de Pessoas Naturais e a própria Secretaria de Direitos Humanos. Esclarece, porém, que “depois da libertação do detento a responsabilidade já não é nossa”. Os casos mais difíceis de verificar são remetidos ao Tribunal de Justiça. Segundo o jornal O Globo, 300 presos seriam regularizados nas próximas semanas.

“Imagine o que é ser livre de novo, retornar à rua, feliz, e não ter nenhum documento?”

A lentidão e complexidade dos trâmites burocráticos no Brasil é proverbial, da concessão de vistos e da celebração de casamentos até o aluguel de um apartamento ou a abertura de empresas. As autoridades inclusive admitem que isso freia a expansão econômica – segundo o Banco Mundial, o Brasil ocupa o 116º. lugar numa lista de 183 países quanto à facilidade para fazer negócios. Tais complicações decorrem fundamentalmente da desconfiança do poder público, como disse a este jornal a advogada Rosana Chiavassa, especialista em defesa do consumidor. “Os princípios de veracidade e de boa fé não existem nos órgãos públicos”, afirmou ela. O emaranhado de documentos exigidos para qualquer ato privado pode em algumas ocasiões transformar o país do samba em um ambiente kafkiano. Na década de oitenta, chegou a existir até mesmo um Ministério da Desburocratização.

Ricardo, que passou dez anos na prisão por matar um homem (em legítima defesa, segundo ele) durante uma briga de bar, considera “incrível” que o destino dos detentos após a pena dependa de um papel tão comum. “Você tem ideia de como é difícil passar uma década na prisão e sair mais ou menos bem? Não morrer em uma briga, não ser assassinado por um traficante devido ao seu passado ou por seu comportamento? Dar um documento de identidade deveria ser facílimo, um prêmio àqueles que superam o drama de uma prisão brasileira.” Seu relato dá rosto à ausência de identidade civil desses réus. “Imagine o que é ser livre de novo, retornar à rua, feliz, e não ter nenhum documento para pedir trabalho, alugar um quarto ou ir ao hospital?”

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