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Reajustes livres de planos de saúde são alvo de Tribunal de Contas

Com quase 51 milhões de beneficiários, as operadoras apelam para o ‘jeitinho’ a fim de burlar a lei com planos coletivos Também discriminam idosos e elevam mensalidades em até 73%

Sala de espera de um hospital particular de São Paulo.
Sala de espera de um hospital particular de São Paulo. Fábio Braga (Folhapress)

“Impossível. A gente não tem como fazer.” É assim que uma corretora de uma das principais agências de seguro de São Paulo responde, quando questionada sobre o interesse de aquisição de um plano para uma senhora de 70 anos. Quando a faixa etária do possível beneficiário diminui pela metade, a conversa muda. “Posso fazer. Mas um plano coletivo. Você tem uma empresa? Posso te encaixar em um sindicato”, propõe.

A conversa ocorreu na última sexta-feira, mas já havia acontecido com dez corretores diferentes antes disso. Mesmo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) reiterando que as duas respostas acima são irregulares, elas continuam sendo dadas pelos corretores, a principal porta de entrada de um beneficiário em um convênio médico.

Tentar contratar um plano de saúde no Brasil se tornou uma verdadeira odisseia. As empresas de convênio têm criado cada vez mais truques para driblar a regulação, feita ainda de forma limitada. Idosos enfrentam dificuldade para conseguir contratar um bom plano de saúde desde que, em 2004, o Estatuto do Idoso impediu que as seguradoras fizessem reajustes por faixa etária a partir dos 59 anos. “Operadoras desestimulam pessoas com mais de 60 a terem convênio. Dificultam o acesso ao não pagar a comissão dos corretores que fazem plano para essa faixa etária, então nenhum faz”, explica a corretora. O argumento de algumas operadoras, que oficialmente não admitem que dificultam o acesso dos idosos, já que isso é ilegal, é que os mais velhos precisam passar por uma avaliação médica que os orientará para o melhor plano, o que não ocorre com pessoas de outras faixas etárias. “É uma discriminação descarada”, desabafa a vendedora, que tem uma mãe com mais de 90 anos, usuária do sistema privado de saúde.

Mas mesmo entre as pessoas mais novas, conseguir um bom plano de saúde que seja protegido pela regulação do setor é difícil. Planos individuais (aqueles feitos diretamente com a operadora) se tornaram raros no mercado, já que eles são os únicos a sofrer limitação de aumento por parte da ANS. As operadoras preferem vender planos coletivos, que têm reajuste livre, feitos com o intermédio de empresas (coletivos empresariais) ou de sindicatos e associações (coletivos por adesão), muitas vezes sem que o beneficiário tenha uma empresa de verdade (só abre uma para adquirir o registro de pessoa jurídica e agrega toda a família) ou pertença, de fato, à categoria à qual está se filiando –a prática se tornou tão comum que recebeu até um nome oficial: são os “falsos planos coletivos”.

Os truques levaram a uma explosão no número de beneficiários dos planos coletivos no país. Em setembro de 2004, 65% dos usuários de convênios médicos tinham algum plano coletivo (21,8 milhões de pessoas). Em 2014, eles já compunham 80% do setor (40,3 milhões) – um acréscimo de 85%. No mesmo período, a parcela de planos individuais caiu. Passou de 25% da fatia dos convênios médicos para 19%.

A agência argumenta que não regula o aumento desses planos porque como eles agregam um maior número de pessoas, o poder de barganha dos beneficiários diante das seguradoras é maior. Mas isso não se vê na prática. O aumento autorizado pela ANS neste ano para os planos individuais foi de até 9,65%. Já os coletivos, que não sofrem esse limite, chegaram a aumentar até 73% em 12 meses (entre maio de 2013 e abril deste ano), segundo um levantamento realizado pelo IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), divulgado em julho passado. A inflação do período, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) foi de 6,28%.

Para analisar se esses aumentos estão acontecendo de forma correta, o Tribunal de Contas da União (TCU) iniciou neste semestre uma sindicância. Especialistas da área estão sendo chamados para opinar sobre o assunto.

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“A situação é desesperadora. O mercado está cada vez pior”, destaca a advogada Renata Vilhena, especializada em planos de saúde, uma das convidadas pelo TCU. “A ANS não cumpre o papel de regulamentar e o serviço está cada vez pior com essa proliferação de planos coletivos”, diz. Ela ressalta que além do reajuste poder ser maior, nesse tipo de plano as seguradoras podem desligar o cliente a qualquer momento e interromper o serviço. Muitas vezes, o beneficiário só percebe quando vai usar o plano. Nos individuais, a decisão de rescindir o contrato não pode partir da operadora, que só pode interromper o serviço na falta de pagamento.

O TCU não forneceu detalhes sobre a sindicância, por se tratar ainda de um processo em aberto.

Filas e demora

Em setembro deste ano, o país possuía 50,6 milhões de pessoas com planos de saúde –o equivalente a um quarto da população. O número representa um crescimento de 62% em relação ao mesmo mês do ano 2000, quando 31,2 milhões de pessoas eram beneficiárias do serviço.

O crescimento do setor, entretanto, não foi pacífico. As cenas de prontos-socorros privados lotados, com esperas que podem chegar a seis horas, e a dificuldade para marcar consultas médicas ou cirurgias se tornaram comuns. Áreas menos lucrativas, como a obstétrica, por exemplo (que diminuiu 4% dos leitos clínicos entre 2010 e 2014) perderam espaço nos hospitais privados, enquanto houve a ampliação de áreas mais lucrativas, como a oncologia (que aumentou em 38% o número de leitos cirúrgicos no mesmo período). Essa regulação própria do mercado gera cenas nada raras de mulheres grávidas, em trabalho de parto, à caça de um local para seu bebê nascer, em meio a cenários de maternidades superlotadas.

Em 2011, a ANS determinou que as operadoras devem cumprir prazos máximos para a realização de procedimentos médicos, que vão de sete dias para uma consulta até 21 dias para procedimentos de maior complexidade, como cirurgias. O descumprimento da regra leva à suspensão dos planos de saúde. Desde que a lei entrou em vigor, 1.017 planos deixaram de ser comercializados, de 142 operadoras. Voltaram para o mercado 847 planos, depois de comprovarem que melhoraram. Existem no país 1.200 empresas de planos de saúde.

Paulette Chame Dwek, de 63 anos, foi uma das vítimas do problema. Em outubro deste ano, quebrou o pulso ao cair na rua e o médico afirmou que ela precisava de uma cirurgia emergencial. Pediu autorização para a Amil, sua operadora, que deu um prazo de dez dias para permitir ou não o procedimento –pela lei, a autorização deveria ser imediata. Ela, então, decidiu pagar pela operação, que custou 42.489 reais. “Eu estava com dor, com a mão inchada, engessada até o cotovelo”, explica. Depois da cirurgia, ela entrou na Justiça e obteve uma liminar que dava a ela o direito de reaver o dinheiro com a operadora. “A autorização chegou no meu celular dois meses depois de eu fazer a cirurgia.” A AMIL afirma que não cometeu nenhuma irregularidade e que cabe recurso da decisão.

Tática é passível de punição, diz ANS

A ANS afirmou que o ingresso em um plano coletivo por adesão sem que o contratante seja membro daquela associação, sindicato ou entidade de classe, é passível de punição à operadora. A operadora responsável será multada em 50.000 reais por cada caso descoberto. A agência destacou que o maior crescimento havido entre os planos de saúde foi o dos coletivos empresariais e que isso tem relação com o maior número de pessoas empregadas ou empreendedoras no país.

A agência afirmou por nota que atua para reduzir a possibilidade de reajustes abusivos aos planos de empresas com menor número de funcionários e que não dispõem do mesmo poder de negociação de uma empresa de maior porte. “A ANS exige desde 2013 que todas as 535 operadoras com contratos coletivos com até 30 pessoas no país os agrupem e apliquem a todos o mesmo percentual de reajuste. Foi nesse grupo, entretanto, que os aumentos chegaram a 73%, de acordo com o Idec. Esses planos com até 30 pessoas correspondem a 88% dos contratos coletivos existentes atualmente (3,3 milhões de pessoas). Neste ano, 144.000 das pessoas que tiveram reajuste maior de 20% no ano anterior tiveram um aumento menor que essa porcentagem agora.

A ANS afirma ainda que caso a operadora esteja dificultando ou restringindo o atendimento de idosos estará desobedecendo ao Estatuto do Idoso, ao Código de Defesa do Consumidor, à Lei dos Planos de Saúde e a uma Súmula Normativa da ANS. Nesses casos, também poderá ser multada em 50.000 reais a cada infração verificada.

A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que representa 27 das principais operadoras líderes do mercado, diz que suas associadas desconhecem práticas restritivas de comercialização de planos e não aprovam a conduta. “Cabe esclarecer que a legislação faculta que as operadoras comercializem ou não planos individuais, mas sem restrição de oferta por idade”, afirmou por meio de nota. A associação também afirma que o número de idosos com planos têm aumentado diante do processo de envelhecimento da população.

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