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Coluna
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Uma vida em dois tempos

O brasileiro Julio Monteiro Martins, um dos mais importantes escritores da atual literatura italiana, encontrava-se desaparecido, mas o redescobri há alguns anos, pelos livros

Há pessoas que morrem antes de morrer. Alguns saem de casa um dia, dizendo que vão comprar cigarros na padaria da esquina, e somem. Outros, tomam um ônibus, um carro, um avião para uma rápida viagem e nunca mais são vistos. Aquele extraviou-se entre o local de emprego e o bar; este, após deixar a escola. Calcula-se que mais de 200.000 pessoas desaparecem todos os anos no Brasil – uma boa parte delas crianças e adolescentes, sendo que este número provavelmente é maior, porque muita gente sequer registra a ocorrência. E há os que, raros, se esfumam por alguma circunstância e, como fossem fênix, renascem gloriosos, ultrapassando as fronteiras convencionais de espaço e tempo.

Em 1979, minha vida de estudante pobre em Juiz de Fora resumia-se a vencer os meses com o minguado dinheiro recebido do crédito educativo – assim, para enganar a fome e a solidão, os fins de semana consagrava aos livros que adquiria em sebos na Galeria do Vasco, no centro da cidade. Meus colegas de república viajavam para Cataguases na sexta-feira à tarde e voltavam apenas no domingo à noite, largando deserta a casa, os cômodos tomados pelo silêncio, ambiente que se metamorfoseava em cenários distantes, habitado por ruidosos personagens.

Num desses sábados encantados, li dois livros de contos e um romance de Julio Cesar Monteiro Martins: Torpalium, Sabe quem dançou? e Artérias e Becos. Apesar de tão jovem, nasceu em 1955, já era considerado um dos mais importantes escritores de sua época, tendo participado da memorável antologia Histórias de um novo tempo, publicada pela Codecri, editora do Pasquim, em 1977, que vendeu 30.000 exemplares em poucos dias e lançou os nomes de Caio Fernando Abreu, Jeferson Ribeiro de Andrade, Domingos Pellegrini, Luiz Fernando Emediato e Antonio Barreto. Foi um alumbramento: Monteiro Martins escrevia tanto narrativas realistas (trafegando com igual competência pelos becos das favelas e pelos apartamentos de classe média da zona sul carioca), quanto fantásticas ou alegóricas (uma mirada sarcástica do universo político nacional). Eu, que até aquele momento achava-me enredado em cipoais de dúvidas, encontrei nas palavras que se construíam diante de meus olhos o significado de ser intelectual no Terceiro Mundo – estética e política confluíam para um mesmo e único escaninho.

O tempo escorreu, veloz e arrogante, enquanto eu, sem saber nadar direito, cruzava um rio caudaloso, a todo momento afundando e voltando à tona, vítima e herói de mim mesmo. Enquanto isso, Monteiro Martins desdobrava sua carreira. Ao longo da década de 1980, publicou dois outros romances (Bárbara e O espaço imaginário) e mais três coletâneas de contos (A oeste de nada, As forças desarmadas e Muamba). Após participar do International Writing Program, da Universidade de Iowa, em 1979, passou a ministrar cursos de criação literária, primeiro no Goddard College, em Vermont, depois no Rio de Janeiro, na Oficina Literária Afrânio Coutinho, entre 1982 e 1989, e na PUC, em 1995.

Ainda na década de 1980, decidiu posicionar-se publicamente, seja contra as duras regras do mercado livreiro, fundando sua própria casa editorial, a Anima, seja ajudando a constituir o Partido Verde e participando do grupo de organização de atividades paralelas da conferência mundial da ONU sobre desenvolvimento e meio-ambiente. Na década seguinte, integrou-se ao Centro Brasileiro de Defesa da Criança e do Adolescente, sendo responsável pela salvaguarda dos meninos de rua sobreviventes, e portanto testemunhas, do Massacre da Candelária – triste e vergonhoso episódio em que oito pessoas, seis menores e dois maiores foram chacinados por policiais militares em frente à igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, na noite de 23 de julho de 1993.

No entanto, após toda essa atividade, como escritor, editor, advogado e professor, em meados da década de 1990 Julio Cesar Monteiro Martins achava-se desencantado. A política partidária o desiludira, as pressões sofridas por sua militância pelos direitos humanos o esgotara, tivera que vender a editora, seus novos livros eram recusados para publicação. Então, para não morrer asfixiado pela falta de horizontes, tomou uma decisão drástica: deixou o país para recomeçar do zero a vida, reinventando-se.

Em 1996, a universidade de Pisa, na Itália, contratou um professor de Língua Portuguesa e Tradução Literária, que, três anos depois, fundava a Scuola Sagarana, um laboratório de narrativa literária, em Pistóia, que também edita a revista literária eletrônica Sagarana, uma das melhores do gênero em qualquer língua. Esse professor, que adotou o nome de Julio Monteiro Martins (abandonando o Cesar), lançou em 1998 uma coletânea de poemas, Il percorso dell’idea, dois anos depois uma coletânea de contos, Racconti italiani, e em 2005 um romance, Madrelíngua, e não parou mais: tornou-se um dos mais importantes escritores da atual literatura italiana. Julio Monteiro Martins foi um dia Julio Cesar Monteiro Martins. Este, que encontrava-se desaparecido, redescobri há alguns anos, pelos livros – mas e os milhares que andam por aí, sumidos, que não têm a competência e o talento de Julio Monteiro Martins para superar-se?

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