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JOSÉ MANUEL DURÃO BARROSO | Presidente da Comissão Europeia

“A crise continua aí: cuidado com as réplicas”

Barroso cerra fileiras, defende seu legado e evita qualquer autocrítica

Claudi Pérez
O presidente da Comissão, José Manuel Durão Barroso.
O presidente da Comissão, José Manuel Durão Barroso.LAURENT DUBRULE (REUTERS)

Existem duas versões a respeito da última década na Europa, período em que José Manuel Durão Barroso presidiu a Comissão Europeia. Há quem acredite que a UE tenta unir-se mais, sem êxito, para administrar, sem êxito, suas relações com um mundo cada vez menos europeu. A União, segundo essa visão, enfrenta uma longa estagnação por causa da má gestão, em meio de uma crise múltipla, financeira e econômica, que ameaça se transformar em crise social e política devido à incapacidade de alinhar interesses nacionais cada vez mais divergentes. E há quem deteste esse pessimismo do eurodesencanto: Barroso abomina “esse gosto europeu pelo masoquismo”. O presidente recebe o EL PAÍS em um escritório quase vazio, do qual desapareceram os quadros de Noronha da Costa, a maior parte da mobília e até os papéis, mas não o entusiasmo europeísta de um dirigente que conseguiu manter o clube unido em meio à tormenta, apesar do risco de perder gente pelo caminho.

Caravana de diferentes personalidades em uma só – foi maoísta antes de alistar-se na centro direita e anfitrião de Bush, Blair e Aznar naquela reunião nos Açores que abriu caminho para a guerra do Iraque –, Barroso cerra fileiras, defende seu legado e evita qualquer autocrítica. Admite certa impotência democrática na gestão da crise, embora ressalte que acabaram sendo tomadas decisões muito difíceis e se reforçou um edifício institucional que não estava preparado para o furacão. Adverte que a preocupante presença da Alemanha muda a configuração política da Europa. E não renega – de forma alguma – suas receitas de política econômica.

Perdemos algumas pessoas na União Europeia

Pergunta. Delors duplicou os fundos estruturais. Santer introduziu o euro. Romano Prodi arquitetou a expansão para o Leste. Como você entrará para a história?

Resposta. Possivelmente o mais importante foi superar a prova mais dura desde a criação da União, a pior crise de sua história. A Europa demonstrou grande solidez. Em algum momento a ruptura do euro foi o cenário central em muitas análises. Equivocou-se quem menosprezou a força do euro, que tem fundamentos econômicos e, acima de tudo, políticos. A zona do euro cresceu de 12 para 19 membros; a UE, de 15 para 28. A resistência do projeto é extraordinária.

P. O clube continua unido, mas perde sócios pelo caminho?

R. Sim, perdemos um pouco de gente. Mas a crise não foi provocada pela Europa, e sim pela irresponsabilidade do sistema financeiro: a UE não teve nenhuma responsabilidade nem na tempestade financeira (os supervisores eram nacionais) nem na imprudência temerária de alguns Governos, que permitiram assumir dívidas insustentáveis. A Europa não causou a crise e é parte da solução: ativou a união bancária e aprovou 40 peças legislativas para regular os bancos. E foi capaz de ajudar os sócios em dificuldades. Compreendo a frustração ligada aos níveis de desemprego, mas peço que os europeus entendam que os problemas não foram criados pela UE.

A Europa não causou a crise e é parte da solução: ativou a união bancária

P. O desemprego é o dobro do registrado nos Estados Unidos. A gestão do euro foi a melhor?

R. Nos momentos mais dramáticos foi necessária a consolidação fiscal; depois, o ritmo do ajuste moderou-se e o foco passou para as reformas. Qualquer alternativa teria sido pior. É certo que a Europa respondeu com lentidão: não somos um país, mas 28, há resistências e visões diferentes, difíceis de conjugar. Os Estados Unidos têm uma economia mais flexível; mas a UE tem um Estado de bem-estar e precisa defendê-lo: os europeus não querem o modelo americano ou o chinês. Precisamos de reformas para defender nosso modelo. De forma gradual: não sou partidário de revoluções nem de contra-revoluções. Vários países têm feito duros sacrifícios. E os resultados começam a chegar: prova disso é o crescimento espetacular da Irlanda, ou a volta da confiança na Espanha.

P. Não será necessário um impulso keynesiano para evitar candidatos como Le Pen?

R. Já fizemos um impulso keynesiano em 2008, mas não foi bem executado. É uma caricatura falsa e injusta dizer que a Comissão está obcecada com a austeridade: eu defendi e defendo um mix de políticas, com reformas, consolidação onde for necessário e um impulso à demanda agregada.

P. A França e Itália não fazem reformas; Alemanha não investe.

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R. A Alemanha deve fazer mais, o problema é que não tem confiança. Mas fará, Berlim entendeu que deve contribuir para elevar a demanda agregada da zona do euro. Junto às reformas e a consolidação, é imprescindível esse estímulo porque a recuperação é frágil. Não só por culpa da Europa: a desaceleração na China e os conflitos geopolíticos, inclusive o ebola, têm um papel, embora alguns europeístas insistam em flagelar-se com o argumento de que a Europa é o problema.

P. O glamour intelectual do pessimismo, como você diz. Não é criticável também o otimismo profissional das elites europeias com 25 milhões de desempregados?

R. A Comissão já propôs um orçamento expansivo. Project bonds como investimento. A garantia juvenil. Vários projetos sempre encontraram grandes resistências nacionais. Somos caricaturizados por nossa obsessão pelo 3% do déficit, mas fizemos propostas ambiciosas que os sócios rejeitaram. A responsabilidade é da Comissão, ou desses Governos?

P. Faltou, conforme dizem seus críticos, uma Comissão mais política, menos complacente, capaz de convencer as capitais?

R. Essa crítica é completamente absurda e desonesta ou as duas coisas ao mesmo tempo. A dimensão excepcional da crise fez os Governos terem mais visibilidade: a Comissão não pode movimentar bilhões de euros. É certo que a Alemanha assumiu a liderança: uma das consequências mais importantes da crise é a alteração da correlação de forças na Europa. Mas a Comissão tem hoje mais poderes que nunca. A liderança de Berlim não é por conta da Comissão, mas pela menor presença de outros países.

A Alemanha deve fazer mais, o problema é que não tem confiança. Mas fará

P. Berlim está impondo uma leitura muito moral da crise?

R. Entre os dirigentes que conheci nesses anos, Angela Merkel foi quem mais investiu na Europa do ponto de vista intelectual, político e pessoal. A Alemanha, gostemos ou não, tem um plano: o problema da UE é que outros não têm. Esse é o drama: de certa forma continuamos sendo 28 espaços públicos.

P. Arrepende-se de não ter levantado a voz em algum momento?

R. Optei por fugir do exibicionismo; não contribuir para a cacofonia nos momentos mais dramáticos. Mas não deixei de trabalhar, toda minha Comissão fez um trabalho sensacional para evitar um acidente sério. Insisti uma e outra vez, quando foi necessário, e mantive posições claras e firmes contra certas propostas de “Merkozy”, por exemplo. Não teria mais êxito com um megafone.

P. Você deixa o cargo com três grandes riscos, além da crise: a saída do Reino Unido, os extremismos e os separatismos. O que o preocupa mais?

Quando foi necessário, mantive posições firmes contra certas propostas de “Merkozy”

R. Devemos evitar os três riscos. A saída do Reino Unido enfraqueceria a Europa e o próprio país. Quanto aos separatismos, repito que nenhuma divisão é boa para a Europa. Respeito as aspirações de todos os povos, mas juntos somos mais fortes. A ameaça do populismo é letal: a Europa sabe bem o que acontece quando esses demônios saem do armário. Mas os extremismos não são exclusivos da UE. Existem na Suíça, na Noruega, nos Estados Unidos, em toda parte.

P. A Europa aguentaria uma terceira recessão, ou isso liberaria os demônios que citou?

R. A crise existencial do euro acabou, mas é preciso tomar cuidado com as réplicas. Não posso dizer, ninguém pode dizer quando vai acabar a crise. Mas não podemos abandonar agora o caminho das reformas: uma virada radical seria negativa para a credibilidade. A Europa precisa de regras aplicadas de forma inteligente. Precisa de reformas permanentemente, e consolidação em algumas áreas, e estímulos em outras: o programa de Juncker, de 300 bilhões, é muito necessário. Mas cuidado: precisamos de crescimento sustentável, e não provocado artificialmente com dívida. Já vimos esse filme. As borbulhas são interessantes por um tempo, mas acabam explodindo, e então os mais vulneráveis são os que mais sofrem. Não repitamos esse erro.

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