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Transplante de células-tronco devolve visão a pessoas cegas

Estudo com 18 pacientes nos EUA mostra que injeção dessas células na retina não causa rejeição e permite reverter danos incuráveis

Nuño Domínguez
Nove dos pacientes tratados tinham degeneração macular relacionada à idade. À esquerda, visão com degeneração macular, e à direita, visão normal.
Nove dos pacientes tratados tinham degeneração macular relacionada à idade. À esquerda, visão com degeneração macular, e à direita, visão normal.NIH

Há muitos anos se pensa que as células-tronco poderão curar doenças regenerando órgãos danificados pelo Alzheimer, o diabetes ou o infarto. Por enquanto esses objetivos continuam impossíveis, mas um estudo traz agora um dos primeiros exemplos de como as células-tronco podem reverter uma doença incurável.

Nos Estados Unidos, um transplante com células-tronco embrionárias, capazes de se transformar em qualquer tipo de tecido do corpo, devolveu a visão a pessoas cegas. O procedimento também melhorou a vista de pacientes que tinham uma vida limitada por graves deficiências visuais. No total, foram tratados 18 pacientes que sofriam de duas doenças da retina, ambas incuráveis, e que são a causa mais comum de cegueira entre jovens e adultos nos países desenvolvidos. Uma delas, sozinha, chega a atingir cerca de 40 milhões de pessoas em todo o mundo. Apesar de nem todos os pacientes terem se beneficiado do tratamento, a maioria envolvida no estudo teve sua visão melhorada – algum deles, de maneira espetacular.

“Um dos pacientes era um criador de cavalos de 75 anos, cego de um olho”, conta ao EL PAÍS Robert Lanza, diretor científico da Advanced Cell Technology (ACT), empresa norte-americana que financiou o estudo. Segundo Lanza, um mês depois do tratamento, a visão do paciente tinha melhorado tanto que ele pôde voltar a montar a cavalo e até perceber um fio de arame farpado em seu caminho e que poderia ter-lhe derrubado do animal. Tecnicamente, o olho tratado deixou de ser cego para ter uma acuidade visual de 20/40, ou seja, suficiente para a pessoa dirigir e equivalente a 50% da capacidade total normal.

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“Outros pacientes também relataram melhoras surpreendentes” depois de ter recebido o transplante e agora podem fazer “pequenas tarefas” que antes eram impossíveis, como consultar o relógio, usar um computador ou até pegar um avião, afirma Lanza, que também é professor-adjunto da Universidade Wake Forest. “Outra de nossas pacientes acordou uma manhã e, ao abrir os olhos, viu pela primeira vez que os móveis de seu quarto eram decorados com um relevo que ela nunca tinha notado antes”, exemplifica o médico, que há décadas pesquisa esse tipo de terapia biotecnológica.

Um fazendeiro cego de um olho conseguiu montar a cavalo e ver obstáculos novamente graças ao transplante

O potencial das células-tronco para a medicina não é novo. Há mais de 30 anos fala-se em usá-las para recuperar corações infartados, fígados diabéticos, cérebros atingidos por AVCs, Mal de Parkinson ou Alzheimer. Tonar isso realidade acabou se mostrando muito mais difícil. Primeiramente, pela possibilidade de rejeição e tumores. Depois, pelo alto número de células-tronco necessárias para tratar um órgão inteiro. E ainda pela polêmica que as células-tronco geram e pelas restrições políticas a seu uso impostas por países como os Estados Unidos.

Pouco a pouco, todos esses obstáculos vão sendo superados. Há algumas semanas, um paciente no Japão recebeu o primeiro transplante experimental com células-tronco reprogramadas, também para tratar problemas de visão. Agora, Lanza e uma equipe de especialistas de cinco centros de oftalmologia de universidades como Harvard publicam no The Lancet, nesta quarta-feira, os resultados de três anos de acompanhamento de seus pacientes transplantados. O trabalho mostra que a operação não provocou efeitos colaterais graves, nem rejeição ou tumores.

Com a intervenção, outros pacientes puderam consultar o relógio, usar um computador e pegar um avião

O estudo se concentrou em regenerar células da retina, a parte interna do olho onde são projetadas as imagens. Os pacientes sofriam de dois tipos de lesões que, ou por razões hereditárias (Doença de Stargardt) ou por degeneração associada à idade (degeneração macular), estavam provocando a perda de células fundamentais para que o olho capte a luz, forme uma imagem e a envie ao cérebro na forma de impulso nervoso.

Para substituir as células perdidas, a equipe colheu células-tronco de embriões e as transformou em epitélio pigmentado da retina, o tipo de célula que estava causando os problemas de visão dos pacientes. Todos eles receberam injeções de células na retina do olho mais comprometido, enquanto o outro não foi tratado. Dos 18 pacientes testados, 10 experimentaram melhoras significativas na visão, sete melhoraram moderadamente ou mantiveram o quadro estável, e apenas um sofreu perda de visão. Os olhos não tratados não melhoraram, o que, segundo o estudo, reforça os indícios de que o transplante funciona.

Terapia em 2020

“A principal mensagem deste estudo é que há esperança”, afirma Steven Schwartz, do Instituto Oftalmológico Jules Stein, da Universidade da Califórnia, e um dos autores do trabalho. O próximo passo será realizar um teste com um número maior de pacientes no qual se comprove tanto a segurança como a eficiência do tratamento. Robert Lanza prevê iniciar esse ensaio antes do fim deste ano. Apesar de muitos especialistas médicos e científicos relutarem em dizer quando futuros tratamentos estarão disponíveis, ele faz uma previsão: “Se tudo correr bem, os transplantes poderiam ser feitos em grande escala em 2020”.

O olho é muitos órgãos em um", destaca um especialista

Lanza é um outsider no campo das células-tronco. A ACT, empresa à qual se juntou em 1999, também. Em várias ocasiões, beirou a falência por fazer afirmações exageradas sobre supostas conquistas, como a clonagem humana ou a obtenção de células-tronco embrionárias sem necessidade de prejudicar o embrião. O estudo publicado nesta quarta-feira é um êxito há muito esperado pelo cientista e sua empresa. “Nosso plano é comercializar o tratamento usando células obtidas com um procedimento que não danifica o embrião”, afirma Lanza, o que o protegeria de possíveis polêmicas. Além disso, ele diz que sua técnica para criar células de retina também funciona com outros tipos de células-tronco, inclusive com as iPS usadas no transplante no Japão.

“São resultados bons e, de fato, é mais lógico começar os transplantes de células-tronco como esse tipo de doença”, opina Cristina Eguizábal, pesquisadora de células-tronco do Centro Basco de Transfusão e Tecidos Humanos. A especialista ressalta que os olhos são ideais para um transplante, pois o sistema imunológico não é tão ativo ali, e a possibilidade de rejeição é menor. Além disso, a área da retina tratada, de cerca de 6 milímetros, precisa de poucas células transplantadas – outra vantagem diante de uma possível escassez.

Luis Fernández-Vega, presidente da Sociedade Espanhola de Oftalmologia (SEO), acredita que “este estudo abre a possibilidade de um tratamento regenerativo a pacientes que até agora não tinham opções para recuperar a visão”.

O estudo também poderia abrir caminho para outras aplicações em doenças incuráveis, como o Alzheimer, ou muito frequentes nos países desenvolvidos, como o diabetes e os problemas cardiovasculares. “Eles não estão equivocados ao pensar isso. O olho é muitos órgãos em um”, diz Jesús Merayo, oftalmologista e membro da SEO. Por exemplo, é o único lugar fora do cérebro onde há neurônios, e também tem vasos sanguíneos de todos os tipos e células que se assemelham às de outros órgãos. Em outras palavras, é provavelmente o melhor lugar do corpo humano para testar terapias em outros órgãos.

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