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Draghi muda o ritmo da política europeia

Seu plano combina reformas em Paris e Roma com estímulos em Frankfurt, Bruxelas e Berlim. Os especialistas acreditam que é imprescindível um pacto político para que a proposta funcione

Claudi Pérez
Mario Draghi depois da reunião do Conselho da instituição.
Mario Draghi depois da reunião do Conselho da instituição.K. P. (REUTERS)

A atual etapa da crise é uma variante do drama anterior: as repercussões do furacão financeiro e da crise do euro ressoam hoje com novos ecos na Europa. Quatro anos depois de enterrar Keynes e ativar uma espécie de experiência econômica, política e social amparada na “consolidação fiscal expansiva” e nas “reformas favoráveis ao crescimento” – nas palavras do ministro alemão Wolfgang Schäuble –, o crescimento econômico na zona do euro continua desaparecido. A saída da crise que se vislumbrava há alguns meses era uma ilusão. A Europa continua atolada em dívidas, apesar dos cortes de gastos públicos, os bancos se arrastam depois de terem engolido milhões de euros, e a zona do euro enfrenta uma década perdida ao estilo japonês (no melhor dos casos), com uma terceira recessão brotando, a deflação à espreita, o desemprego em níveis insuportáveis e uma insatisfação social, enfim, em alturas dignas do Himalaia. Nunca houve um só mea culpa pelo diagnóstico equivocado (a mãe de todos os problemas era a indisciplina fiscal, segundo o relato moralista das elites). Nem pela posterior sucessão de erros. Mas muitos indicadores estão iguais ou piores do que no início da crise, começando pela renda per capita, o desemprego e a dívida. E nisso chegou Mario Draghi: o homem mais bem informado a respeito do futuro da zona do euro é a primeira personalidade importante a dizer que será preciso mudar de ritmo.

O presidente do BCE acha que o problema agora é a frágil demanda

Há alguns dias, nos EUA, o chefe do Banco Central Europeu pronunciou um discurso audaz, e nesta semana ele passou à ação com a aquisição de ativos privados. Esse é um indício de como as coisas estão ruins. Mas também de que o vento mudou: o BCE tem um plano. Há um roteiro, um projeto, uma ideia diferente germinando. Uma nova orientação que pode funcionar, segundo fontes consultadas nas instituições e entre um destacado leque de especialistas.

Frente às políticas de oferta ensaiadas desde 2010 – reformas estruturais mais austeridade –, Draghi admite agora que a Europa enfrenta um problema de demanda. Ele continua defendendo reformas, mas avisa que a política monetária pode fazer mais (e só lhe resta uma bala, a compra maciça de dívida) e exige que a política fiscal e os investimentos sejam retomados – Keynes redivivo, com um toque de pós-modernidade. Há muitas formas de qualificar o que acontece na Europa: os especialistas falam de uma armadilha de liquidez, de uma recessão de balanço, de uma deflação de dívida, de um estancamento secular. O Nobel Joseph Stiglitz é mais explícito: “Uma depressão”. O economista Brad DeLong é ainda mais ousado: “Uma Grande Depressão”. Draghi ignorava essas trombetas do apocalipse e passou meses falando de recuperação, a qual ia descrevendo em função dos ventos. “De janeiro a março era uma reativação lenta. Em junho era mais fraca do que o previsto. Moderada e desigual em agosto. E em setembro vimos o que há: crescimento zero, inflação zero. E uma multidão de dogmáticos esse tempo todo clamando por políticas de oferta, quando estamos perante um problema enorme de demanda. Draghi foi um irresponsável, mas ao menos agora reconhece seu erro: esperemos que não seja muito tarde”, observa Paul de Grauwe, da London School of Economics.

Ken Rogoff, da Universidade Harvard, assegura que o ativismo do BCE “é necessário”, mas mesmo assim a política monetária já não é senão “uma ponte que deve permitir chegar a algo mais ambicioso”. “A França, a Itália e a Europa em geral continuam necessitando de reformas para melhorar seu potencial. Em curto prazo isso significa recessão e desemprego: a Alemanha deve se mexer e permitir uma expansão fiscal e investimentos. Se os líderes nacionais e europeus falharem e não seguirem o Plano Draghi ao pé da letra, irão enfrentar um futuro à japonesa, ou uma volta a 2010: uma crise econômica e política de difícil solução”, afirma. Barry Eichengreen, da Universidade Berkeley, acrescenta que o problema é que a necessidade imperiosa da Europa “difere sempre do que a política alemã é capaz de aceitar”. “Os planos de Draghi estão bem direcionados, mas exigem um amplo acordo político. E a Europa ainda precisa demonstrar que é capaz de obtê-lo”.

França e Itália reivindicam um abrandamento das metas fiscais e uma elevação do investimento

França e Itália pleiteiam um abrandamento das metas fiscais e a ativação de um plano de investimento europeu como ponto de partida para as reformas. A Alemanha quer que a sequência se inverta: primeiro as reformas – o porrete – e depois a cenoura. “É lógico que Berlim desconfie de Paris e Roma por suas promessas mil vezes descumpridas, mas também que Roma e Paris receiem: houve reformas na Espanha, Irlanda e Grécia, e continuamos sem ver a cenoura. O problema mais grave é essa grande desconfiança, que se manifesta na ruptura Norte-Sul”, dizem fontes europeias.

Não há muito espaço para otimismo na Europa. “A situação está pior do que em 2007”, brada Charles Wyplosz, do Graduate Institute. “As dívidas estão mais altas, os bancos, igualmente frágeis, o desemprego é mais crônico, a fé na resistência da UE é menor”, admite um ex-conselheiro do BCE. “O tom lúgubre dos dados é deprimente, mas lógico, porque essa combinação de juros em 0% e austeridade impede a recuperação. Depois de um quinquênio de misérias, agora Draghi faz essa descoberta de que falta demanda. Espero que com isso acabem os dogmas”, critica Wyplosz.

Os especialistas concordam que é urgente um pacto político ambicioso para ajudar Draghi. André Sapir, do Instituto Bruegel, insiste em que “será preciso aprovar reformas em Paris e Roma, porque isso amolecerá Berlim, e será preciso convencer Berlim da necessidade de estímulos imediatos, porque isso tornará a pílula mais fácil de engolir no outro lado do Reno”. Wolfgang Münchau, diretor do instituto Eurointelligence, diz que a guinada de Draghi “é o mais importante que aconteceu na Europa em muito tempo”. “O BCE está a um passo das compras de ativos à moda americana (o chamado QE, sigla em inglês de abrandamento quantitativo), e pela primeira vez diz que são necessários estímulos além de reformas. O cenário mais factível é um pequeno plano de investimento europeu, uma flexibilização suave dos objetivos de déficit – nos limites dos tratados, não além – e um QE limitado, além das reformas, possíveis na Itália e mais difíceis na França. A questão é por quanto tempo os europeus aceitarão erros políticos tão monumentais como até agora”.

O BCE começará a injetar liquidez nos bancos em alguns dias, e em outubro porá em marcha as compras de bônus privados; é possível que o QE chegue em 2015 se a economia continuar à míngua. Em novembro sairão os resultados de alguns testes impostos aos bancos (“Devem ser muito mais duros do que o mercado espera: se as entidades conseguirem levantar capital, o crédito melhorará”, segundo Rogoff). E, na arena política, Draghi joga em três frentes: Paris e Roma devem converter suas promessas em reformas, “ou do contrário deixarão o BCE sozinho diante de Berlim”, acrescenta Tito Boeri, do Bocconi. Os 28 países da UE devem realizar uma cúpula sobre crescimento e emprego em outubro; a Comissão – Poder Executivo do bloco – apresentará aí o seu plano de investimentos. E, em meio a tudo isso, “prosseguirá uma chuva fina de dados que, na melhor das hipóteses, confirmarão o estancamento de uma economia que claudica”, prognostica Alfredo Pastor, do IESE.

A política europeia é o resultado de toda essa agitação, mas também uma tenaz batalha de ideias. Uma parte do espectro ideológico vai ganhando desde 2010 com receitas que falam alemão. A outra se rearma agora pelos péssimos resultados, que afetam inclusive a Alemanha, com a inesperada ajuda de Draghi. A Europa precisa encontrar um ponto de convergência entre essas duas concepções. E a linguagem pode oferecer alguma pista: o vocábulo alemão para “dívida” possui a mesma raiz que a palavra que expressa “culpa” (Schuld), mas o termo italiano que indica a ideia de “crença” ou “confiança” constitui por sua vez a raiz do essencial “crédito” (credere). Curiosamente, um italiano que vive em Frankfurt é quem poderá harmonizar as duas visões. Seu nome é Mario Draghi.

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