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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A barbárie se repete, desta vez em Cascavel. Até quando?

Urge inverter a lógica dominante nas últimas décadas, adotando políticas descarcerizantes, que envolvem ainda a revisão da política de drogas

A rebelião na Penitenciária Estadual de Cascavel, no Paraná, e a brutalidade que se seguiu, com a morte de quatro presos, dois dos quais decapitados e os outros dois jogados do telhado, infelizmente não é novidade, e não choca a opinião pública no Brasil, que assiste inerte a mais um episódio de uma longa série. No telhado da penitenciária, uma bandeira do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi hasteada, demonstrando a extensão do domínio das facções criminais no interior do sistema prisional.

Em uma sociedade ainda marcada por profundas desigualdades sociais que a aproximam mais de um sistema de castas do que de um igualitarismo republicano, a instituição prisional se legitima socialmente, cumprindo simbolicamente sua função retributiva e intimidatória contra as classes populares. A situação se agrava nas duas últimas décadas por dois motivos: o crescimento da criminalidade urbana violenta, expresso, entre outros crimes, pelas altas taxas de homicídio, que segundo o Mapa da Violência, entre 2007 e 2012 cresceu 15% no país, atingindo a marca de 29 homicídios por cada 100 mil habitantes, o que amplia a sensação de insegurança e fomenta o discurso da guerra contra o crime; e o crescimento vertiginoso das taxas de encarceramento, que segundo dados do DEPEN, entre 2005 e 2012, aumentou 50%, variando de 360 mil para 548 mil pessoas presas, fruto, em grande medida, do endurecimento da ação do Estado contra o tráfico de drogas, levando milhares de pequenos comerciantes de drogas aos presídios, e da utilização crescente da prisão provisória, agravando o caráter seletivo e discriminatório do sistema penal e deixando intocada a ineficiência da investigação policial e a morosidade judicial.

No mês de julho, o Instituto Sou da Paz em parceria com organizações e especialistas lançou a Agenda de Propostas Prioritárias para a Segurança no país. No tópico da modernização da política criminal e penitenciária, estão colocadas uma série de medidas que, uma vez implementadas, poderiam contribuir para o enfrentamento do problema carcerário.

Entre as propostas estão a priorização das alternativas penais, com a ampliação do conceito de delitos de menor potencial ofensivo para crimes com pena até 4 anos, a estruturação de centrais de penas alternativas nos estados, e a ampliação do acesso à justiça, via o fortalecimento das defensorias públicas e o investimento em mecanismos para a administração de conflitos de proximidade. Para a melhoria das condições carcerárias e a ampliação do controle do Estado sobre o ambiente prisional, a Agenda propõe qualificar o corpo técnico e de segurança do sistema prisional, efetivar a implementação dos regimes aberto e semiaberto pelos estados, incentivar programas de atendimento a egressos, e implantar mecanismos estaduais de prevenção à tortura.

Todas estas medidas são absolutamente factíveis, e poderiam ser implementadas em curto prazo. A lógica sustentada para a produção da mudança é a ruptura com as políticas de endurecimento penal, responsáveis pela demanda infinita de novas vagas e consequente superlotação carcerária. Urge inverter a lógica dominante nas últimas décadas, adotando políticas descarcerizantes, que envolvem ainda a revisão da política de drogas. A atual política é insustentável, desumana, além de não ter um efetivo impacto para desbaratar dinâmicas de criminalidade organizada, e apenas tira de circulação indivíduos que serão rapidamente substituídos por outros na dinâmica criminal. Por fim, ao contrário do que alguns críticos do sistema penal ainda sustentam, qualificar as instituições de segurança pública, valorizando seus profissionais, desde as polícias até os agentes penitenciários, não significa assumir uma perspectiva gerencialista ou administrativista, mas ultrapassar o limiar que ainda separa a sociedade brasileira de um efetivo estado democrático de direito, tendo como foco a valorização da vida. Tergiversar nesta matéria nada mais é do que flertar com a barbárie.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é sociólogo, coordenador do PPG em Ciências Sociais da PUCRS, pesquisador do INEAC e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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