_
_
_
_
_
ATILA ROQUE | DIRETOR DA ANISTIA INTERNACIONAL

“A juventude quer a radicalização da democracia no Brasil”

O diretor de Anistia Internacional no país diz que há um incômodo desta geração pelo enorme déficit de justiça na sociedade

María Martín
Átila Roque, de Anistia Internacional, em São Paulo.
Átila Roque, de Anistia Internacional, em São Paulo.Bosco Martín

Atila Roque (Rio de Janeiro, 1959) já escutou várias vezes aquilo de “se você tivesse sofrido a violência na sua própria pele não defenderia tanto os direitos humanos de todo o mundo”. Ele, responsável hoje pelo escritório da Anistia Internacional no Brasil, responde em silêncio e lembra-se do seu pai, morto em uma tentativa de assalto e cujo responsável nunca foi punido. “Você não pode transformar o desejo de vingança e a dor em uma visão política, algo muito comum hoje em discussões como a pena de morte”, afirma.

Foi o assassinato do pai o que, de certa maneira, o levou até onde está hoje, à frente de uma organização internacional, com 20 pessoas na sua equipe e 3,5 milhões de reais de orçamento para denunciar as violações de direitos humanos cometidas em um país de 200 milhões de habitantes. “Essa morte me marcou profissionalmente. Naquela altura acabava de me formar em história e minha ideia era seguir a carreira acadêmica, mas ao ver meu pai morrer dessa forma abrupta eu não consegui sair do Rio. Ao ficar, eu tive que procurar uma alternativa para viver, mesmo porque foi um golpe financeiro na família. Foi aí que o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) me fez minha primeira proposta de emprego sério na sua campanha nacional pela reforma agrária”. E foi assim que materializou seu espírito ativista. “O Ibase foi muito importante para mim porque descobri um lugar profissional onde era possível participar da vida política e desenvolver ao mesmo tempo minha vocação acadêmica”.

Roque diz que descobriu o mundo “de uma maneira bastante particular” durante os três anos que morou em Tóquio quando tinha 26 anos. E descobriu muito cedo que a vida política sob siglas de partidos não era com ele. Desde então, nunca parou.

Pergunta. Quais paralelismos vê no ativismo da sua época e o que vemos hoje nas ruas brasileiras?

Resposta. O paralelismo entre mim e os jovens de agora é que somos gerações de grande transição. Eu comecei a descobrir o mundo do ativismo ainda no período da ditadura, mas mais no começo dos anos de abertura. Era um momento onde existia uma grande frustração pela incapacidade do Estado de nos representar. A juventude hoje vive uma transição de outra ordem. Está na busca de uma radicalização da democracia. Nós estamos enfrentando um país que, apesar de todos os avanços logrados na esfera política e social, permanece em um enorme déficit de justiça. Esse sentimento gera um incômodo muito interessante e acho que, em parte, se expressa nas manifestações de junho para cá, mas também de outras muitas formas. Eles têm uma vontade muito autêntica de ser parte de um processo de mudança do mundo. Há mais paixão que razão, inclusive.

Os jovens têm uma vontade muito autêntica de ser parte de um processo de mudança do mundo. Há mais paixão que razão, inclusive

P. Como a sociedade brasileira, Estado e instituições têm respondido a essa “paixão”?

R. Se revelou de uma maneira muita forte tudo aquilo que não foi superado do autoritarismo brasileiro. Vimos que as estruturas do Estado, a segurança e a Justiça, estão despreparadas e defasadas para responder aos desafios do que é Segurança Pública e Justiça no marco de um Estado democrático.

Os que trabalhamos neste âmbito já sabíamos que temos um aparato de segurança com um treinamento focado na guerra, na ideia da conquista de território, da supressão da dissidência e não na garantia de direitos. A novidade foi que isso se colocasse de forma tão escancarada, despudorada, na vida pública das cidades.

P. A Anistia Internacional condenou duramente a violência policial nas ruas e as prisões de manifestantes...

Temos um aparato de segurança com um treinamento focado na guerra, na ideia da conquista de território, da supressão da dissidência e não na garantia de direitos

R. Nossa preocupação foi sobre a forma como o Estado reagiu na linha da criminalização do protesto. Embora não seja uma novidade, porque o Brasil já tem uma história da década dos 90 de muita criminalização de movimentos sociais. Os primeiros a serem processados por formação de quadrilha foram os movimentos do campo na área rural, como o Movimento Sem Terra. Agora ganhou uma escala assustadora, porque o que esperávamos era que o Estado avançasse e não andasse pra trás. O que choca agora é o risco real de um retrocesso em como o Estado regula a ordem pública no Brasil. E isso está se revelando de forma mais clara no debate sobre a Segurança Pública.

P. Em que consiste esse debate, o que está em discussão?

R. Todas as áreas passaram por inúmeras reformas e revitalização nos últimos anos. O que nós temos agora em matéria de saúde, educação ou políticas sociais, comparado com a década dos 70, é muito diferente. Exceto a Segurança Pública. Isso é muito revelador do papel que a violência tem no Brasil na regulação da ordem. Desde a escravidão, a pesar do mito da sociedade pacífica e cordial, a sociedade brasileira está muito marcada pela violência, pelo racismo e a desigualdade.

A polícia, melhor dito o sistema de segurança pública, sempre foi instrumento de garantia dessa ordem. É a última fronteira a ser pensada. Por isso corremos o risco de uma atraso conservador na área de segurança, porque existe uma queda de braço das reformas que deveríamos fazer nesse assunto. A reforma das polícias está na agenda, vai estar em breve no dia a dia das pessoas, e a sociedade vai ter que fazer escolhas. E isso vai ter um reflexo em como vamos a enxergar o sistema prisional, a política de drogas, a militarização da polícia ou o sistema criminal.

O que choca agora é o risco real de um retrocesso em como o Estado regula a ordem pública no Brasil. E isso está se revelando de forma mais clara no debate sobre a Segurança Pública

P. Qual é o papel de organizações como Anistia Internacional em esses debates? Qua capacidade de interlocução tem?

R. O Governo sempre esteve muito aberto a nos receber, mesmo não estando de acordo com nosso discurso. Já estive com o ministro da Justiça, de Relações Exteriores, na Secretaria da presidência, de Direitos Humanos... No entanto, no âmbito da nossa campanha sobre os protestos, encontramos uma maior resistência no Governo Federal, mas também nos estaduais. Já mandamos ofícios para todos os governadores, além de documentação e protocolos de ação em manifestações pacificas e o nível de aceitação foi muito baixo.

P. Talvez eles acharam elevado o nível de violência nos protestos?

R. O fato de você ter manifestações de violência em um protesto, não justifica a violência policial. Você não pode usar a violência de uns poucos para reprimir. A polícia tem que ter protocolos muito claros sobre o uso de armas menos letais. Vimos um uso excessivo sem controle de balas de borracha, gás lacrimogêneo e gás pimenta, e uma atitude de criminalização do protesto como um todo. Esse é o dilema. Esse é o momento em que se vê o melhor e o pior do Estado. Nós vimos o pior.

P. Como a sociedade brasileira convive com a violação de direitos humanos?

R. Temos muito que fazer. Desnaturalizar a violência e romper o silencio é o maior desafio. Vivemos um excesso de complacência em relação à violação de direitos, e ai a responsabilidade não é só do Governo, senão dos atores privados, é da mídia, das pessoas que tem voz...

Nossos grande desafio é a cultura da indiferencia e o olhar seletivo que a sociedade tem sobre quem sofre violações de direitos humanos. Se for branco e rico vira um tema de conversação, agora se isso acontece na periferia ninguém se importa. A violência seletiva no Brasil está no nosso foco.

Nossa próxima campanha vai tratar sobre os homicídios, com os que se vão 56.000 vidas por ano. Uma grande parte das vítimas são jovens, e desses 70% são negros ou pardos. A sociedade não faz nada. Eu chamo isso de epidemia da indiferença. E isso revela muito como a desigualdade está ancorada em um profundo racismo.

P. Você diz uma vez que acreditava no poder do feminismo para que a sociedade avançasse e o autoritarismo ficasse ao descoberto. O que você queria dizer?

R. Essa frase vem de como eu entendo o poder e a desigualdade. No no controle de bens econômicos, senão dos bens simbólicos. De um lado está o racismo, e de outro está o sexismo. Acredito que algumas lutas têm uma capacidade muito grande de desorganização do poder. A luta feminista tem uma qualidade muito radical, porque desafia aquilo que é naturalizado. Eu hoje reformularia a frase: O movimento LGBT tem um poder de perturbação da ordem até maior que o feminismo. Eles avançam uma fronteira ainda maior, questionam papeis predefinidos, questionam a identidade sexual, o que é homem e mulher. Desestabilizam o status quo. Eu gosto disso.

Após uma hora de conversa, Roque está atrasado e deve sair para a inauguração do Fórum de Segurança Pública que acontece em São Paulo. Peço para ele dar uma nota - ou uma palavra - ao Brasil em sua luta nos seguintes quesitos. Roque dá uma nota, uma palavra e um comentário antes de sair às pressas.

P. Impunidade.

R. Já estivemos muito pior, mas daria um 3. E a palavra seria seletiva.

P. Corrupção.

R. 6, bom 7. A palavra é transparência. É muito mais visível agora, o que não significa que sejamos mais corruptos.

P. Violência policial.

R.1.

P. Mas não estivemos pior?

R. Ok, daria um 2. Brasil é um país que nem sabe quanto sua policia mata. Se você perguntar hoje quantas pessoas são mortas por policias você não sabe porque não há registro. Só em estados como Rio e são Paulo há uma conta, isso já e um indicador muito grave. A polícia brasileira, certamente, está entre as que mais matam, e certamente também entre as que mais morrem.

P. Respeito às minorias.

R. Um 5. Acho que ainda tem muito racismo, muito preconceito, mas olhando em perspectiva estamos longe de realidades muito piores.

P. Racismo.

R. Um 4. Acredito que somos mais racistas que homofóbicos. A nossa escola de intolerância é o racismo. Uma vez que aprendemos a ser racistas é mais fácil ser homofóbico e intolerante. É a base. É a estrutura de todas as formas de discriminação.

P. Desigualdade.

R. A desigualdade é reveladora das estruturas de poder. Tem toda uma linha de pensamento muito tecnocrática que pensa que dando mais educação se luta contra a desigualdade, mas a desigualdade é o resultado de escolhas da sociedade sobre quem deve e não deve ter poder. Acho que estamos avançando, estamos com 6.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_