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“Não vou para a Ucrânia. Veria os assassinos da minha família”

Holanda, o país que tem mais vítimas na catástrofe do MH-17, auxilia os familiares de seus 193 compatriotas mortos

Isabel Ferrer
Várias pessoas formam fila para assinar o livro de condolências no aeroporto de Schiphol, em Amsterdã.
Várias pessoas formam fila para assinar o livro de condolências no aeroporto de Schiphol, em Amsterdã.Christopher Furlong (Getty Images)

Oitenta investigadores holandeses recolheram durante estes dias mostras de DNA entre os familiares das vítimas, placas dentárias e informações sobre possíveis tatuagens, cicatrizes ou marcas especiais que ajudem a colocar nome e sobrenome nos corpos destroçados de seus 193 azarados compatriotas a bordo do voo MH-17 das linhas aéreas malásias. O resto dos 17 milhões de holandeses, em estado de choque, pouco a pouco conhece pessoas até então anônimas. Moradores de quase todas as regiões do país, que não voltarão.

É impossível tirar o olhar do rosto de Sem Wels, um garoto de 10 anos, que ocupava ontem a página do jornal Algemeen Dagblad. Sua fotografia, tirada na janela de sua casa em Rosmalen, em Brabante, no sul do país, lembrava o menino que até pouco tempo atrás viajou com seus pais, Leon e Conny, para Bali (Indonésia). Seriam as férias de sua vida e, sobre sua cabeça, aparece outra imagem. São os três, sorrindo em outras férias, na margem de um canal. Na mesma cidade, e na mesma rua, viviam seus amigos, Remco e Yvonne Trugg. O casal também viajava com suas filhas, Tess, de 10 anos, e Liv, de 6, no avião abatido. A mais velha terminaria o primário no próximo semestre, e uma de suas amigas a deixou esta mensagem na porta de sua casa: “Sinto sua falta. Já não quero mais ir para o Grupo 8 (último da educação básica). Espero que leia isto do céu”.

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Em Neerkant, um povoado também situado em Brabante, de apenas dois mil habitantes, uma família completa desapareceu. Jeroen e Nicole Wals, pais de Amel, Solenn, Jinte e Brett, duas meninas e dois meninos, cujos amigos ainda lhes deixam mensagens nas redes sociais com a esperança de receber uma resposta. A última mensagem de Jinte, de 15 anos, no Twitter, antes de decolar, não poderia ser mais alegre: “Decolamos daqui a uma hora para a Malásia”, deixou escrito. Sua avó disse “eu era avó”, quando a comunicaram oficialmente sobre a terrível notícia.

De Vleuterweide, no município de Utrecht, no centro da Holanda, viajaram outros dois estudantes. Eram dois irmãos, Robert Jan e Frederique Vanzijtveld, de 17 e 18 anos. Ambos foram aprovados com boas notas, e ela havia sido admitida na universidade para estudar Medicina. Em seu colégio, dava aulas de apoio de Física e Química para outros alunos, e seus professores colocaram na página da internet do colégio uma nota recordando que era “alegre e espontânea e ajudava sempre; uma garota com grandes planos para o futuro apagados de uma vez”.

Outros holandeses ficaram órfãos com a tragédia. É o caso de Kevin, que vivia em Roterdã com seus pais, Jenny Lo e Popo Fan. Os dois gerenciavam restaurantes chineses na cidade portuária, Asian Glories e Dim Daily. O garoto, que não tinha irmãos, foi imediatamente apadrinhado por um dos chefs. Herman den Blijker e Francois Geurds terão a tarefa de fazer com que possa ter um futuro no negócio familiar. A clientela foi até os locais em busca de respostas.

Ainda que os selfies sejam cada vez mais comuns, existe um que aperta o coração. Quem o fez foi um casal de noivos, Laurens e Karlinj no aeroporto de Amsterdã-Schiphol. Aparecem rindo e felizes, pouco antes de embarcar rumo a Kuala Lumpur, capital da Malásia e destino do avião. Rutger Keijzer, o irmão da moça, enviou a foto para o jornal De Volkskrant quando soube que os havia perdido “para mostrar para a Holanda, e para o mundo, a dor que tenho e a que meus pais sofrem, minha outra irmã e centenas de outros”.

Tendo em vista o caos em que a recuperação dos cadáveres se está convertendo, os irmãos Tosca e Gerrit Mastenbroek, que perderam sua irmã e toda sua família, temiam que acabassem roubando “até a aliança de matrimônio”. “Vi na televisão passaportes abertos de passageiros que estavam próximos dela. É horrível. Não penso em ir para a Ucrânia. Veria os assassinos da minha família andando por ali”, declarou Gerrit para a televisão holandesa.

Enquanto as famílias de todos são ajudadas por psicólogos, no colégio Orange Nassau, em Dordrecht, no sul, choram a perda de dois de seus professores, Anton e Lianne Camfferman. Viajavam para o Vietnã, e ela havia trabalhado duas décadas no colégio. Deixam três filhas sozinhas. Os domicílios de todos eles se encheram de flores, ursinhos de pelúcia e cartas de lembrança e pêsames, formando uma espécie de jardim, entre macabro e luminoso, por todo o país.

Vítima de um avião malásio pela segunda vez

A australiana Kaylene Mann perdeu seu irmão Rod e sua cunhada Mary no voo da Malaysia Airlines que desapareceu no dia 8 de março em algum ponto do mar da China. Na quinta-feira, quando o MH-017 que voava de Amsterdã para Kuala Lumpur foi atingido presumivelmente por um míssil disparado pelos separatistas pró-russos no leste da Ucrânia, a australiana sofreu outra perda familiar, a de sua enteada, Maree Rizk, que regressava para Melbourne com seu esposo após passar quatro semanas de férias na Europa.

"Voltei a passar outra vez por isso... Algo assim te destroça por dentro", balbuciava após saber a notícia da morte de irmão de Kaylene, Greg Burrows, que acrescentou que a família tenta encaixar o segundo golpe em pouco mais de quatro meses. Apesar deste destino especialmente cruel, Burrows frisou que não têm nada contra a companhia aérea malásia. "Ninguém poderia prever que o avião seria abatido", disse; "isso está completamente fora de nosso alcance".

Enquanto isso, cerca de vinte familiares das vítimas malásias aguardam notícias em um hotel próximo ao aeroporto internacional de Kuala Lumpur, onde foram visitadas ontem pelo primeiro ministro, Najib Razak. Coincidentemente, entre os 44 mortos malásios se encontra também uma avó de Razak e o ministro de Defesa, Hishammuddin Hussein, que são primos. Amira Kusuma, de 83 anos, era a segunda esposa de Tan Sri Noah, avô de Najib.

A tragédia do MH-017 abateu famílias inteiras, como a de Dayang Noriah Aji, que ontem rezava por sua filha, seu marido e seus quatro filhos, todos eles mortos no voo. "Perdi minha filha e sua família em um piscar de olhos", declarou Aji para um diário local.

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