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“Eu joguei futebol por acaso”

Quando estreou pelo Real Madrid, em 1953, tinha 27 anos e havia aprendido quase tudo que existe para aprender sobre futebol

Diego Torres

Alfredo di Stéfano está farto de falar sobre as cinco Copas Europeias. Descansa em sua cadeira. Range os dentes. Tira algo do bolso do paletó. E ordena: "Olha". Na palma da sua mão, está uma medalha de prata com a inscrição gasta: River Plate - San Lorenzo de Almagro, 1947. "Foi a minha estreia", diz. "Um amistoso no campo do Chacarita".

Pergunta. "Do que você se lembra?"

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Resposta. Havia 16 jogadores. O time principal em um banco e nós sentados no chão. Moreno olha para mim e diz: "E você, quê, não vai colocar uma faixa?". "Eu? Não sei nem o que é isso!". "Tenha cuidado porque o campo está muito ruim, se torcer o tornozelo, fica parado por dois meses". Disse quatro coisas e chamou o auxiliar: "Traga uma atadura para este garoto". Os grandes me davam conselhos. Por isso que a Argentina forma jogadores de futebol. Por isso que a futura residência dos garotos do Real Madrid tem que ser onde está o time principal. Eles tem que conhecer os grandes. Tudo é uma questão de companheirismo.

P. Por que gosta de ler Martín Fierro?

R. Porque sempre aprendo alguma coisa. E como houve um tempo em que gostava do campo...meus pais se dedicavam à agricultura, a plantar batatas. Eu comecei a jogar futebol organizado aos 14 anos, em Los Cardales, um povoado a 60 quilômetros de Buenos Aires. No rio Luján havia até javali e perdiz. Era coisa de Deus. Não gastávamos nem pólvora. Meu pai não queria saber de caçar. Havia uma escopeta em casa, caso alguém tentasse levar os cavalos ou as vacas. Havia gente que roubava, que levava as ovelhas, se nós nos descuidássemos. Tínhamos que ficar atentos. Como sempre!

A única coisa que é necessária para a tática é ter três ou quatro caras no campo que saibam o que é uma equipe"

P. Os jogadores do River Plate tinham carros?

R. Carros? No meu bairro, passava um carro a cada meia hora. Negri era o único que tinha carro. Era de uma família muito boa. Tinha um automóvel precioso. Antigamente, o sonho de jogar futebol era mais para ser conhecido do que para ganhar dinheiro. Quem pensaria que tudo isso seria uma profissão? Quantos conheci que eram futebolistas amadores? Jogadores extraordinários que não fizeram carreira porque tinham que trabalhar e levar dinheiro à família. Eu jogava no bairro e dizia: "Por que eu iria?". Estava estudando e meu pai tinha os campos. Eu lia os convites e dizia: "Eu não vou".

P. Mas acabou virando profissional.

R. Chegou um eletricista, que era jogador do River e conhecia meu pai. Perguntou sobre a família, e minha mãe disse que um dos meninos jogava futebol muito bem. Quando chegou o convite do River para um teste, perguntei: "Quem me recomendou?". Minha mãe.

P. Foi uma má notícia.

R. Foi porque eu não tinha mais escolha. Peguei o bonde 88, chateado, até Chacarita, atrás do cemitério. Subi e vi alguém com um jornal e duas chuteiras. E me disse: "Tenho certeza que vai fazer um teste no campo do River!" Olhou para mim e ficou ao meu lado. "Olá, que tal? Vai ao River?". "Sim". "E você?". "Eu também". "Joga de quê?". "De oito. E você?". "Eu também". "E quantos anos têm?". "Dezessete". "Eu também". "O que faz?". "Eu trabalho com meu pai no cemitério. Rego as flores". Chamava-se Salucci.

P. Passou no teste?

R. Os dois. Observaram-nos por 30 minutos. Não víamos as pessoas indo. Ao fim, o treinador esperava à saída. Era Peucelle. "Tem documento de identidade?", perguntou. "Dá aqui". E assim eu fiquei preso para o resto da vida. Com a assinatura, não tinha mais recursos. O clube mandava.

P. Quanto pagaram?

R. Ganhava 20 pesos por partida. Com o primeiro prêmio, eu comprei vestes tamanho 49 em uma loja que se chamava Auténtico e depois comprei duas calças na Casa Braulio.

Quando chegou o convite do River para um teste, perguntei: "Quem me recomendou?". Minha mãe."

P. Voltou a jogar no bairro?

R. Eu tinha que ir para baixo, do contrário, diriam. "Que vaidoso...quem acha que é? Apenas porque joga no River pode ser idiota? Não!". E então, claro, quando comecei a crescer, perguntaram: "Como você virou profissional?". Joguei futebol por acaso! Porque o meu pai conversou com um eletricista.

P. Praticou outros esportes?

R. No colégio. O preparador físico me perguntou: "O que quer fazer? Por aqui, há pouco futebol". E eu escolhi o atletismo. Lembro que havia um cara que sempre ganhava de mim nos 100 metros. Não conseguia vencê-lo. Tinha uma bronca. Deu tanta raiva que comecei a jogar basquete, hóquei, qualquer coisa. Não importava. O único que não quis jogar foi o rúgbi porque eu me machucaria muito. Eu era muito magro.

P. Quantas vezes pediram para que você mencionasse os melhores jogadores da história?.

R. Sempre respondo o mesmo: Labruna, Pedernera, Moreno e Loustau.

P. Vamos falar sobre a linha de frente da Máquina. Moreno dizia que dançar o tango ajudava a complementar os seus treinamentos. Eram muito noturnos?

R. Saíamos nos dias que podíamos sair. Não é que jogavam bem porque iam ao cabaré. Também não tomavam uma garrafa de whisky cada um, como se diz, porque a carreira dos que tomam uma garrafa de whisky não dura muito e todos eles jogaram até os quarenta anos. Nos cabarés, dançávamos. Não eram como os cabarés franceses. Em Buenos Aires, a gente ia ver as orquestras. O argentino é um boêmio diferente. Não é o clássico que vai ao cabaré buscar mulheres. O argentino vai aparecer, pela bebida. A anedota mais bonita daquela época é a de Mono De Ambrosio. Um dia foi com Moreno ao cabaré Marabú e deram dez pesos a uma garota para que ela dançasse com Mono, que não sabia dançar nada. Todos dançavam menos ele. Então, foram todos dançar e Mono ficou sentado. A moça foi e o convidou: "Vamos dançar?". E ele disse: "Não sei". Foi chamado de "Não Sei" pelo resto da vida. "E aí, Não Sei?", dizíamos. Até que se casou.

Pratiquei atletismo, hockey, basquete... O único que não joguei foi rugby. Era muito magro"

P. Como era De Ambrosio?

R. Um ponta. Um craque. Jogo no campo do River, contra o Huracán. Eu estava de frente, na tribuna. Mono correu pela lateral e espirrou. Viu que o bandeirinha andava por ali com a bandeira levantada. Agarrou-a e assoou o nariz. O bandeira começou a chamar o árbitro. Começou uma grande confusão.

P. Mas Moreno foi a sua maior referência.

R. Moreno foi... o que eu sei? Artista em tudo. Artista no futebol, artista na vida privada, artista de cinema, de teatro, para dançar. Era dez anos mais velho que eu. Seu pai era policial. Outro dia, estava vendo um jogo do Tigre pela televisão. E disse à minha filha: "Minha mãe, há 60 anos, eu estava ali!". Jogávamos o campeonato e atiravam de tudo na gente. Entramos em campo e jogaram um cadeado de trem em Moreno, que acertou sua cabeça. "Fanfa, olhe, está sangrando", disse. Eu era o único que dizia Fanfa (de fanfarrão). "Fanfa, tem sangue por todo lado!". E me disse, calmamente: "Cala a boca, um jogador de futebol não desiste jamais".

P. Dizem que em Madrid o seu futebol se completou. Mas no River teve que substituir um mito: Adolfo Pedernera. Como foi sua transformação?

R. Taticamente, eu amadureci em Bogotá. No bairro, jogava por dentro, pela direita ou pela esquerda. Gostava. Quando fui ao River, me colocaram pelo lado direito, eu vinha de trás e me mandavam à frente. O centroavante machucou-se e disseram: "Ele é muito rápido. Vamos colocá-lo ali e ver o que acontece". E eu ia para cima. Mas Peucelle me disse: "Não, você tem que recuar. Não viu como Pedernera jogava? Então, daquele jeito". Fomos ao campo do Atlanta e ganhamos por 7 a 0. Grande partida! E eu jogando de centroavante como Pedernera. Não fiz nenhum gol. Estava chateado e fui ao vestiário. Veio Peucelle e me disse: "Boa, Alfredo, é assim que se joga!". E eu: "Assim que se joga? Mas eu não fiz nenhum gol!".

P. Por que esse River foi tão inovador?

R. Moreno voltava, Pedernera voltava, Loustau voltava. Todos recuavam, menos Labruna, que ficava mais à frente. Cruyff fazia o mesmo. Ficava atrás e não se sabia se era um onze, um sete ou um dez. Antes não era assim. Quando cheguei ao Real Madrid, tinha que jogar enfiado na área. Não gostava porque às vezes não há jogadores para isso. Aqui, quando os defensores marcam o atacante central, marcavam-no até a morte. Um em cima e outro na sobra.

P. Qual foi a primeira coisa que aprendeu sobre o futebol europeu?

R. Não sabia de nada até que Zubieta e Lángara foram a Buenos Aires. Eu vi o 4 a 1 do San Lorenzo no River, com quatro gols de Lángara. Estava com meu pai atrás do gol. Eu o vi fazer um gol com o ombro, o primeiro. Um com a direita, outro com a esquerda e outro de pênalti.

P. O que você acha dos salários que se pagam agora?

R. Tem que avaliar a quantidade de intrusos que vivem do futebol. É uma cadeia. Quando me dizem que os jogadores ganham demais, eu digo: "E deveriam ganhar mais!". Porque há 400 milhões de pessoas ligadas a eles, querendo uma parte daquilo. Dizem que agora há uma organização terrível. Na nossa época, comíamos dois pratos de macarrão e íamos jogar com a barriga cheia. Parece que os antigos eram sábios porque agora a única coisa que comem antes de jogar é macarrão. O que está acontecendo?

Jogaram um cadeado de trem em Moreno, que acertou sua cabeça. "Olhe, está sangrando", disse. E ele respondeu, calmamente: "Cala a boca, um jogador de futebol não desiste jamais".

P. A tática evoluiu?

R. Ainda vai evoluir! No futebol, tudo é muito exagerado. Na minha época, o técnico era um cara com um casaco azul que tinha quatro faixas de esparadrapo pretas na mão para fazer um E. Agora, se fala muito, há muita poesia, muita novela. Quando um jogador está em campo, nunca vira ao banco e pergunta ao seu treinador. "Que faço? Assim ou assim?". A única coisa que é necessária para a tática é ter três ou quatro caras no campo que saibam o que é uma equipe. "Cuidado com este!". "Deixa, que eu o mato". "Eu o mandei para lá...!". É uma questão de ofício, de picardia, de equilíbrio. Por isso, não é o mesmo ter 18 e 28 anos. Por mais que aos 18, jogue-se maravilhosamente, por mais que seja o Messi...é muito enjoativo.E driblar no meio-campo está certo. Sim. Diante de dois ou três rivais, e se roubam a bola? Adeus, boa sorte. Agora, este louco [Messi] é um espetáculo. Eu o estou estudando. O que acha? Leva a bola assim, com toques curtos, tic, tic. O segredo são os toques curtos e a força. É potente. É como um (Francisco, ex-jogador espanhol) Gento forte. É mais forte que Maradona.

P. Gosta de quais jogadores?

R. O melhor de todos, junto com Messi, é Cristiano Ronaldo. Tem muita velocidade. O que manda no futebol? Técnica e velocidade. Por que o Real Madrid tem tido problemas? Porque não tem velocidade!

P. O que pensava do futebol europeu quando veio?

R. Nos anos 1950, depois de voltar de um tour pela Europa com os Millonarios, estava comprando mortadela com meu irmão e disse: "Olha, eu vou para a Espanha. Eu vou pegá-los com umas fintas assim e deixo todos para trás". Depois, já na Espanha, quando os vencia com dribles, eles estavam de volta. Lembro que escrevi uma carta ao meu irmão: "Olha, aqui, você pode dar 40 dribles, mas sempre tem alguém em cima". Era diferente. E a preparação física também. Na Argentina, tudo era criatividade. Aqui era tudo físico. Todos saltavam de cabeça, todos jogavam com centroavantes. Na Argentina, se chovia, o jogo era suspenso. Na Espanha, jogava-se com chuvas e balas.

P. Era um jogo mais pegado que agora?

R. Os marcadores eram mais leais. Agora, agarram, incomodam, fazem faltinhas. Em vez de fazer um esforço superior para derrubar o rival, para se antecipar ou desarmá-lo, agarram-no. É muito chato. Depois, com cinco cartões amarelos, está suspenso. O clube paga.

Di Stéfano é um homem introvertido. Disse que a homenagem da UEFA o deixa "envergonhado". Também fala com incredulidade de outras comemorações: "Me fizeram uma estátua. Outro dia, fui vê-la. Estavam os escultores, os arquitetos. É como o obelisco! Fui com minha filha, fiquei olhando para ela".

– Pai, está com a boca aberta, me disse.

– E o que queria? Estou gritando um gol!

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