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Em busca da joia da Armada Invencível

Uma equipe de especialistas trabalha no litoral da Irlanda para recuperar o galeão ‘São Marcos’, que naufragou há 426 anos

'A Destruição da Invencível Armada Invencível', de José Gartner de la Peña.
'A Destruição da Invencível Armada Invencível', de José Gartner de la Peña.

Seja em inglês ou em gaélico, não há nomes de lugares na Irlanda no qual sobreviva com mais intensidade a lenda da Armada Invencível do que em Spanish Point. Ou Rinn na Spáinneach, em gaélico. Localizada a poucos passos dos penhascos de Moher, esta pequena cidade de apenas 80 vizinhos voltou a reforçar nas últimas semanas seus laços com a Felicíssima Armada de Felipe II — o termo Invencível foi um bem-sucedido apelido inglês— graças a uma campanha arqueológica de primeira ordem: o Projeto São Marcos. Seu objetivo? Nada menos que, nas próximas semanas, recuperar o galeão de mesmo nome que, há 426 anos, afundou em seu litoral.

Construído na Cantábria, o São Marcos era o auge da tecnologia naval na época e uma das joias da esquadra de Portugal. Comando pelo Marquês de Peñafiel, carregava 790 toneladas e contava com 33 canhões de bronze, além de 350 soldados e 140 marinheiros. A comunidade científica cruza os dedos diante da possibilidade de, pela primeira vez, encontrar um galeão na Irlanda, um descobrimento maiúsculo que se somaria a outros destroços da Armada Invencível, como a embarcação Girona, cujos tesouros brilham no Ulster Museum de Belfast. Porque o grande cenário da tragédia —marítima e humana— da frota de Felipe II, uma formação de 130 barcos e 300.000 homens pensada para invadir a Inglaterra, não foi o Canal da Mancha, mas o litoral ocidental da Irlanda. “Entre setembro e outubro de 1588, quando a frota enfrentava o seu desesperado regresso à Espanha beirando a Irlanda, em seu litoral afundaram 24 barcos e morreram 6.000 homens”, diz Hiram Morgan, historiador da Universidade de Cork e autoridade nas relações hispânico-irlandesas nos séculos XVI e XVII.

Aos 32 anos, John Treacy, historiador do Mary Immaculate College de Limerick, é o cérebro e o coração do Projeto São Marcos. Nos últimos três anos, ele e sua equipe bateram na porta de todas as instituições públicas e privadas da Irlanda para conseguir fundos e autorizações necessárias para uma campanha deste calibre. Fruto destes movimentos, o Governo irlandês ofereceu tecnologia de última geração para, por exemplo, mapear até o momento 75% do lugar no qual se acredita que os destroços estejam localizados, assim como o investimento necessário para realizar mapas 3D da área marinha via satélite.

“O melhor desta aventura é que está sendo desfrutada por Spanish Point e outras cidades próximas, um esforço coletivo que começa, por exemplo, pelos mergulhadores, que pertencem a clubes de submarinos dos condados de Clare, Galway e Limerick, e que mergulham de forma altruísta”, afirma o historiador. Até as crianças colocam seu grão de areia. A entrada da única grande superfície comercial de Miltown Malbay, a maior cidade da região com 700 habitantes, está cheia de desenhos com o São Marcos como protagonista. Os autores, crianças entre 5 e 11 anos das escolas da região, contribuem com imaginação à sua memória. “Não deixa de ser impactante observar a tragédia do galeão através dos olhos dos pequenos”, diz Treacy.

Mick O’Rourke, um dos maiores especialistas em naufrágios da Irlanda, é o que melhor conhece as dificuldades da campanha. Para começar, o mesmo mar que engoliu o São Marcos e uma climatologia muito variável. Como explica o especialista, o êxito dependerá em grande medida do trabalho da linha de mergulho que será desenhada, a um palmo do fundo do mar. “A linha é composta de 16 mergulhadores separados por um metro de distância, avançando em paralelo, que abrangem trechos de 100 metros a uma profundidade de três a 10 metros.” Ainda que os elementos externos não serão seus piores inimigos. “No mesmo lugar onde afundou o galeão, foram registrados 21 naufrágios de diferentes épocas. Será como fazer um quebra-cabeças de 5.000 peças abaixo do mar, com as peças de outros 21 quebra-cabeças misturados”, afirma O’Rourke. “A chave para saber que encontramos o São Marcos e não outro barco será localizar os canhões, todos marcados com o selo de sua fundição”.

O 'São Marcos'

O galeão foi construído em 1585 na Cantábria

Capacidade 790 toneladas e 33 canhões de bronze

Levava 350 soldados e 140 marinheiros. Sobreviveram quatro pessoas que logo foram fuziladas pela Inglaterra.

Afundou em 20 de setembro de 1588, em uma tempestade de rajadas de vento de 100 quilômetros e ondas de 15 metros de altura

Todos conhecem as armadilhas que terão que superar para encontrar o barco, mas também estão conscientes de que estão a ponto de tocar um tesouro de valor incalculável. “É como se tivéssemos uma máquina do tempo que nos aproximará a um dos barcos mais formidáveis da Grande Armada”, afirma Treacy, que não tem dúvida do descobrimento: “Estamos a ponto de toparmos com o Titanic da Invencível”. Não exagera na comparação. O São Marcos havia demonstrado ser um barco quase invencível depois de se debater no pior choque bélico do Canal e chegar até lá com sua estrutura muito maltratada.

Até que se deparou com o que os marinheiros de Spanish Point ainda chamam, em gaélico, de Mal Rock, uma rocha traiçoeira que apenas mostra sua crista afiada na superfície, junto a Mutton Island. Foi contra essa rocha maldosa que o galeão chocou-se na tarde de 20 setembro de 1588. “Foi surpreendido por uma tormenta com rajadas de vento de 100 quilômetros e ondas de 15 metros de altura”, lembra Treacy, “por isso o capitão buscou abrigo entre a ilha e terra firme”. Essa foi a perdição do barco, que se precipitou contra a rocha para desfazer-se em mil pedaços.

Dos 490 homens do galeão, apenas quatro conseguiram chegar à terra. Estes, juntos aos 60 sobreviventes de São Estevão, que afundou nesse dia a alguns quilômetros ao sul, em Doonbeg, foram capturados por Boetius Clancy, o representante da Coroa Inglesa. Este não pensou duas vezes antes de obedecer as ordens expressas de Isabel I: executar qualquer espanhol, sem importar classe ou status. Assim, inclusive Dom Felipe de Córdoba, um dos sobreviventes dos naufrágios cujo resgate teria enriquecido Clancy, foi executado junto aos outros homens na colina mais alta que dá vista à praia de Spanish Point.

Parte da equipe que busca trazer à tona o ‘São Marcos’, diante dos penhascos de Moher, na Irlanda
Parte da equipe que busca trazer à tona o ‘São Marcos’, diante dos penhascos de Moher, na Irlanda

São numerosas as histórias de São Marcos que as senhoras de Spanish Point relataram durante gerações. Como a que lembra “o túmulo dos espanhóis”, o lugar onde foram sepultados os enforcados e as centenas de afogados. Tuama na Spáinneach, em gaélico.

Tragédia, heroísmo, lenda... A odisseia da Invencível na Irlanda tem todos os elementos de uma grande história, dessas que continuam fascinando apesar de o passar do tempo. O Projeto São Marcos mostra isso. Embora como todo bom relato, o melhor está por vir. O São Marcos dorme há mais de quatro séculos no fundo do mar, com seus segredos e história intactos. Seu descobrimento não apenas demonstraria que sua história e a da Invencível estão por contar, mas que seus capítulos mais apaixonantes ainda estão por ser escritos.

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