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Julgamento do passado da Blackwater

Um tribunal dos EUA julga quatro ex-agentes pela morte de 17 civis em 2007 no Iraque

Soldados da Blackwater, em 2007.
Soldados da Blackwater, em 2007.gervasio sánchez (ap)

Coincidindo com o retorno de militares norte-americanos ao Iraque, o nome da Blackwater soa de novo com força nos Estados Unidos. O obscurantismo da companhia de segurança privada volta a ser objeto de escrutínio com o início de um julgamento em Washington pela matança em 2007 de 17 civis em uma praça de Bagdá e ao serem conhecidas novas revelações sobre o manto de impunidade sob o qual operavam seus agentes.

Na hora dos acontecimentos, que tiraram a vida de transeuntes da concorrida praça de Nisour, entre eles um garoto de nove anos, a firma norte-americana de mercenários estava subcontratada pelo Departamento de Estado, por mais de um bilhão de dólares (2,23 bilhões de reais), para proteger seus diplomatas e gozava de imunidade legal no Iraque. O massacre ocorreu em um momento no qual haviam por volta de 25.000 agentes de segurança no país e prejudicou a imagem da Blackwater, que agora se chama Academi e acaba de se fundir com o gigante mundial Triple Canopy. Agora existem menos agentes, mas Washington segue subcontratando empresas privadas.

As trágicas recordações sobrevoam desde meados de junho o julgamento que acolhe um novo processo impulsionando pelo Governo norte-americano contra quatro agentes da Blackwater acusados de abrir fogo indiscriminadamente nesta praça, em 16 de setembro de 2007. O julgamento acontece após anos de tropeços do Departamento de Justiça, cuja acusação foi indeferida em 2009 por erro de procedimento.

Na hora dos acontecimentos, a companhia de mercenários estava subcontratada pelo Departamento de Estado para proteger seus diplomatas e gozava de imunidade legal no Iraque

Ainda que com o tempo tenham ficado mais difusas, as recordações daquela manhã seguem atormentando o iraquiano Mohamed Jasem, que trabalha como entregador e em uma extremidade da praça levou um tiro na têmpora. A cicatriz da bala segue bem visível em sua cabeça raspada. “Vi um furgão branco em disparada. Corri e me escondi atrás de um muro. Levantei a cabeça um instante e senti um disparo”, afirmou na segunda, através de uma intérprete, Jasem, de 34 anos, com o olhar duro e atitude inquieta.

É uma das pessoas que testemunham esta semana para um juiz federal, os 17 membros do júri, uma vintena de advogados e os quatro acusados em uma pequena e solene sala de um tribunal do Distrito de Columbia, situado a poucas ruas do Capitólio. Se presume que o julgamento será longo e a acusação prevê financiar a ida para Washington de cinquenta cidadãos iraquianos para que prestem declaração. É o maior número de testemunhas estrangeiras em uma causa penal nos EUA.

Dois meses depois do massacre, que indignou o Governo iraquiano, o FBI determinou que 14 dos 17 civis morreram por conta dos disparos de um comboio de quatro jipes da Blackwater, que escoltavam alguns diplomatas após o estouro de uma bomba em um local próximo. Desde então, o ponto é tentar verificar se os agentes, como diz sua defesa, abriram fogo contra o mencionado furgão que se aproximava deles porque acreditavam que podia conter explosivos e estavam sendo atacados. Ou se, como alega a acusação, dispararam sem pretexto algum. Um dos guardas é acusado de assassinato porque a Promotoria considera que foi ele quem iniciou os disparos, o que poderia supor a prisão perpétua. Os outros três são acusados por homicídio, que poderia acarretar 30 anos de prisão.

Poucos meses depois da matança, o FBI determinou que os agentes da Blackwater dispararam contra civis em uma praça de Bagdá. O ponto está em definir se foi em defesa própria ou abriram fogo sem motivo

Todos eles serviram no Exército antes de trabalhar na Blackwater. A mesma situação de Matthew Murphy, outro dos integrantes do comboio e que testemunhou nesta semana contra seus ex-companheiros. No seu caso, acumulava uma experiência de dois anos como soldado – uma parte no Iraque – quando em dezembro de 2006 incorporou-se ao numeroso plantel da companhia no país, aonde ganhava por volta de 150.000 dólares anuais (333.900 reais), dez vezes mais que no Exército.

Logo depois de deixar os Marines em 2004, Murphy – que agora tem 37 anos e é policial em Boston – começou a sentir-se “aborrecido” e fora de lugar. “Não estava preparado mentalmente para ficar longe, me sentia diferente dos civis”, respondeu, com calma e parcimônia, às perguntas da acusação. E em apenas um ano já estava orgulhosamente de volta no Iraque, trabalhando para outra firma de segurança. No ano seguinte se incorporou a Blackwater.

Durante quatro intensas horas de declaração, os promotores do Governo o interpelaram em uma profusão de detalhes. O fizeram desenhar trajetórias em um mapa da praça de Nisour e explicar, com as próprias armas, como funcionavam os rifles e os lançadores de granadas empregados no fatídico massacre. E frente à pergunta chave, com os olhares tensos dos quatros acusado fixos sobre ele, Murphy assegurou que o furgão branco “em nenhum momento foi uma ameaça” e que o comboio não estava sendo atacado, dando a razão para a tese da acusação.

Entretanto, em uma confusa combinação que pode ser crucial, insinuou que foi outro agente, e não o apontado pelo Governo, o primeiro a abrir fogo. Os quatro acusados apenas testemunharão se a defesa solicitar. Talvez lhes faça falta uma vez que Murphy afirmou que dois deles tinham antecedentes de disparar com facilidade e odiavam os iraquianos. E também acusou a Blackwater ao dizer que havia lassidão no uso de armas. Alguns lampejos de luz em uma companhia que, apesar de mudar de nome e proprietário, segue imersa no obscurantismo.

Washington conhecia as negligências antes da matança

Poucas semanas antes da matança na praça Nisour, o Departamento de Estado conhecia as irregularidades e a impunidade na qual operavam dezenas de agentes da Blackwater que protegiam seu pessoal diplomático. Em um relatório de agosto de 2007, revelado esta semana pelo The New York Times, um investigador alertava que a falta de supervisão havia gerado um "ambiente cheio de negligências" e que os guardas da companhia se sentiam "acima da lei".

O investigador comprovou em sua própria pele quando ao pedir explicações ao chefe da Blackwater no Iraque este ameaçou assassinar ele e altos funcionários da Embaixada dos EUA em Bagdá se colocassem de lado a companhia de segurança. “Não me surpreende porque os acordos são muito pouco claros. As regras têm de ser flexíveis para que qualquer destas empresas opere”, afirmou por telefone Joe Young, professor de direito na American University em Washington.

Young sublinha que existem mercenários de guerra “há milhares de anos” mas que a subcontratação disparou no princípio dos anos 1990 e após os atentados do 11 de Setembro em 2001. A Blackwater, que simboliza a privatização das guerras do século XXI, se viu atingida pela matança. Foi expulsa do Iraque e este incidente limitou a impunidade das companhias. Entretanto, desde 2007 a ONU vem pedindo maior regularização destas companhias e o Governo dos EUA segue utilizando a segurança privada no Iraque. Em 2010 firmou um acordo de 10 bilhões de dólares (22,26 bilhões de reais) por cinco anos com oito companhias, entre elas a Triple Canopy, que há um mês se fundiu com a Academi, a firma que comprou a Blackwater em 2010.

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