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Os hinos também disputam a sua Copa

A maioria dos países institui o aprendizado da canção nacional a partir da época escolar

Francisco Peregil
Neymar e Daniel Alves ouvem o hino contra o México.
Neymar e Daniel Alves ouvem o hino contra o México.Kai Fösterling (EFE)

Em uma Copa, o hino não é só o símbolo oficial do país. Suas notas podem ser o primeiro lance de ataque dos jogadores e da torcida contra a meta adversária. Na partida em que a Espanha enfrentou o Chile, o público espanhol fazia o coro de sempre para o seu hino: Lo-lo, lo-loooo... Assim vinham vencendo até agora. Sergio Ramos olhava para o céu, na mesma atitude que seu colega Raúl estava habituado a demonstrar. E Piqué mascava chiclete. Em seguida, os chilenos entoaram o seu com a mão no coração.

O hino da Espanha sempre foi um dos mais vaiados dentro do seu próprio país. Era uma canção militar composta em 1761 e conhecida como Marcha Granadera. Depois começou a ser chamada de Marcha Real, por ser interpretada em atos com a presença dos monarcas. O Governo da II República espanhola (1931-1939) o aboliu, e o ditador Francisco Franco o restabeleceu em 1937.

Como nunca teve letra, entre as crianças de mais de 30 anos atrás ficou famoso o estribilho: “Franco, Franco, que tem a bunda branca, porque sua mulher a lava com Ariel…”. Esse passado franquista fez com que boa parte da população não se identificasse com seu hino. As reivindicações independentistas da Catalunha e do País Basco também encontraram no hino um alvo fácil de atacar. Na final da Copa do Rei de 2009, entre Barcelona e Athletic de Bilbao, as duas torcidas receberam o hino com uma estrondosa vaia, que foi censurada por Televisão Espanhola (estatal). Em 2012, as duas equipes voltaram a se enfrentar em outra final, e as duas torcidas voltaram a vaiar o hino.

No Chile, um fato semelhante seria inconcebível. Conforme relatou Jorge Valdano neste jornal, o Chile cantou seu hino “como quem sai para invadir, não como quem sai para jogar. E fez uma partida coerente com esse entusiasmo pátrio”. No Chile, como na maioria dos países latino-americanos, o hino se aprende na escola. Quase todos os chilenos se identificam com ele, independentemente da sua ideologia. E cada um reforça a parte que mais lhe convém. Pinochet gostava do trecho que diz: “Vossos nomes, valentes soldados / que tendes sido o sustento do Chile”. E as pessoas de esquerda ressaltava a coisa de “Ou o asilo contra a opressão”, e arrematavam com a palavra revolução.

No Brasil, o hino também é ensinado nas escolas. Mas a letra é de um português bastante arcaico, que poucos sabem cantar corretamente – e menos ainda a compreendem em sua totalidade. Entretanto, há um sentimento geral de orgulho pela melodia. Assim, quase todo brasileiro se emociona com ele, sem distinções políticas. Nesta Copa, virou moda que os jogadores e seu público o cantem a cappella quando a parte orquestral termina. O fenômeno aconteceu pela primeira vez em 19 de junho de 2013, em Fortaleza, na segunda partida da Copa das Confederações, em plena onda de protestos contra os aumentos nas tarifas do transporte e os gastos excessivos com a Copa. De repente, cantar o hino se tornou mais do que nunca um ato de reafirmação patriótica. E agora, quando termina a parte instrumental, o público continua cantando uma letra que até recentemente quase ninguém sabia, e os jogadores a acompanham, emocionados. Neymar, na partida contra o México, disputada precisamente em Fortaleza, começou a chorar quando cantava; os narradores dos canais brasileiros choram, chora Ronaldo como comentarista, e choram alguns jornalistas estrangeiros impressionados com o impacto de 60.000 vozes unidas, sem a ajuda de instrumentos.

Os jogadores não tiveram remédio senão aprender a letra. No México, o hino é também uma das coisas mais sagradas. Na escola se aprende uma versão de quatro estrofes, a que habitualmente é cantada, porque a original tem dez. Há décadas triunfou no México uma lenda urbana segundo a qual, no final do século XIX, o hino mexicano havia ficado em segundo lugar num concurso em Paris. O primeiro lugar foi para a Marselhesa. O chato é que a mesma lenda se alastrou por outros países do continente, como a Bolívia, o Brasil e o Peru. Quem conta isso é o peruano Daniel Titinger López em seu livro Dios Es Peruano. No Peru, o hino começa a ser cantado nos jardins da infância, nas escolas públicas, e bem menos nos colégios particulares. Assim, nas classes mais humildes quase todo mundo conhece os versos “Somos livres, sejamo-lo sempre / sejamo-lo sempre”. Antes, era habitual cantar com a mão no peito, mas hoje em dia só os militares – como o presidente Ollanta Humala – fazem isso. No Uruguai, crianças de 6 a 11 anos precisam saber o hino e jurar a bandeira no dia 19 de junho. Em troca, obtêm um documento oficial. Não jurar a bandeira impede os cidadãos uruguaios de obterem títulos profissionais ou entrarem para o funcionalismo público.

Já na Europa costuma haver mais distanciamento. Na Holanda, por exemplo, apesar de o país ter o hino nacional mais antigo do mundo, chamado Wilhelmus, ou Guilherme, apenas 40% da população o sabe, segundo uma pesquisa publicada no começo deste mês pela empresa ferroviária nacional. E os demais 60% são capazes de cantarolar, com mais ou menos dificuldades, a primeira das suas 15 estrofes. Não é ensinado nas escolas, mas 73% consideram “importante” conhecê-lo. Nesta Copa, os jogadores da seleção o cantavam com bastante determinação.

Os jogadores da seleção italiana cantam com muita convicção. Mas isto é algo bastante recente. E começaram a cantar com convicção precisamente porque receberam críticas porque não faziam isso. Na Alemanha, apesar de ter ganhado três vezes a Copa, ter sido quatro vezes vice-campeã e outras quatro no terceiro lugar, o hino está longe de ser venerado como em outros países da América. Um jovem perto de vinte anos pode lembrar que aprendeu na escola - e cantado - a terceira estrofe de Das Deutschlandlied (A Canção da Alemanha) que depois da II Guerra Mundial se converteu no hino. Mas esse mesmo jovem reconhece que seria incapaz de repetir completamente a letra que acompanha esta melodia de Joseph Haydn. Os franceses aprendem A Marselhesa no colégio e a cantam no futebol e no rugbi quando sua seleção vai ganhando. Quase todo mundo sabe a letra toda e sobretudo os versos que dizem: "Vamos, filhos da pátria, o dia de glória chegou." Também é cantada nas reuniões e nos atos oficiais importantes. A ultradireitista Frente Nacional acusa os jogadores da seleção de origem árabe e africana de não conhecer a música. E alguns dos mais destacados como Karim Benzema, se negam a cantá-la.

Os jogadores da seleção do Brasil cantam o hino a cappella junto com a torcida. A emoção fez chorar Neymar, jornalistas e Ronaldo, que está como comentarista

Nos Estados Unidos, no entanto, a Star Spangled Banner (A bandeira coberta de estrelas) é cantado ao início de qualquer competição esportiva. Não só os esportistas, mas o público, em pé e com a mão no peito, canta a primeira estrofe, a mais famosa e a que os cidadãos memorizam. Esta canção, que o Congresso dos EUA, só declarou oficialmente hino em 1931 costuma ser interpretada nas competições por cantores conhecidos, promessas musicais, crianças prodígio e em todos os estilos: a cappella, soul, operístico… Não é cantada nas escolas públicas, onde, no lugar, a cada dia antes de começar as aulas, os alunos, a partir dos 5 anos, recitam o ‘Juramento de fidelidade’ à bandeira das 13 listras (pelo número de colônias que declararam a independência da Grã-Bretanha em 1776) e 50 estrelas (pelo número de estados atuais). Em uma nação de dimensões continentais como os EUA, e diversificado em termos de etnias, religiões e línguas, o patriotismo, a identificação com o hino e a bandeira, são alguns dos poucos fios - finos, mas sólidos - que criam coesão no país. Todos, brancos e negros, hispânicos e anglo-saxões, podem vibrar com o último verso, o mais conhecido e citado do hino, que descreve os EUA como "a terra dos livres e a pátria dos valentes".

Na Colômbia, as crianças aprendem no colégio as 11 estrofes do hino e costumam cantá-lo nos atos oficiais com a mão no peito. Milhares de colombianos choraram de emoção quando Nairo Quintana subiu ao pódio como campeão do Giro da Itália. Na Bolívia, que não se classificou para a Copa, o hino também é cantado desde a creche. Quando suas notas começam a soar é uma das poucas vezes em que muitos homens e mulheres indígenas descobrem suas cabeças. Evo Morales canta com o braço esquerdo no alto com o punho fechado e a mão direita entre o coração e o estômago. Mas seu estilo só se difundiu entre os membros do Governo.

Em uma nação de dimensões continentais como os Estados Unidos, a identificação com o hino e a bandeira são alguns dos poucos fios - finos, mas sólidos - que criam coesão no país

Na Venezuela, que tampouco compete na Copa, o hino está acima das divisões entre chavistas e opositores. O presidente democrata-cristão Luis Herrera Campins (1979-1983), decretou que o hino deveria ser difundido por rádio e televisão à meia-noite e ao meio-dia. Esse decreto foi cumprido, com altos e baixos, nas administrações posteriores, até que Hugo Chávez o resgatou em 1998. Os jogos da liga profissional de beisebol, o esporte mais popular entre os venezuelanos, sempre são precedidos pelas "gloriosas notas do Hino Nacional da Venezuela", como reza uma fórmula criada por locutores e apresentadores de todos os estádios. Nos atos políticos, reuniões e assembleias costuma-se incluir o hino nacional, seja de chavistas ou da oposição.

No Equador, todo mundo sabe de cor. Na escola está instaurado o que se conhece como a segunda-feira cívica: os alunos usam um uniforme mais formal e fazem fila no pátio no começo da manhã, a bandeira é içada e cantam o hino com a mão no coração. Nas creches da Argentina tocam o hino, mas não é em todas que se ensina a letra. Na escola primária, sim. A maioria dos argentinos sabe sua versão curta. Mas Messi acabou no olho do furacão quando as câmeras mostraram, quatro anos atrás, que ele não estava cantando o hino. Seu pai, Jorge Messi, alegou: "Quando eu vou à igreja, rezo em voz baixa. Não preciso que as pessoas fiquem olhando como rezo." E o jogador de basquete Luis Scola declarou: "Estou escutando por rádio críticas a Messi por não cantar o hino, isso é uma piada? Que ridículo! Deixem o Messi em paz, por favor. Eu, por exemplo, não canto nunca. Não gosto de cantar. Mas, claro, não tenho 30 milhões de olhos em cima de mim, nem 3, ha." Agora, no Brasil, só a introdução musical é tocada. Por isso, a torcida grita em coro um "ooo" prolongado, a câmera da Televisão Pública argentina foca um Messi emocionado de olhos brilhantes, como aconteceu contra a Bósnia... E todos ficam contentes.

Este artigo foi elaborado com a colaboração dos correspondentes da América e da Europa.

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