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DESAFIO DOS EUA

A crise da Ucrânia transtorna a política externa de Obama

A doutrina da contenção, que marcou a guerra fria, volta a estar na ordem do dia. A Casa Branca queria centrar-se na Ásia, mas a Europa retorna ao centro das preocupações

Marc Bassets
Obama no jantar de gala com a imprensa no sábado em Washington.
Obama no jantar de gala com a imprensa no sábado em Washington.JEWEL SAMAD (AFP)

A Ucrânia transtornou a agenda exterior do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Há alguns meses, o presidente calculava que poderia dedicar os últimos três anos de seu segundo e último mandato às negociações com o Irã, à guerra civil na Síria e ao “pivô para a Ásia”: a tentativa de dirigir os esforços diplomáticos e militares da maior potência mundial para conter a ascensão da China. Mas o conflito na antiga república soviética não só obriga a Casa Branca a reformular as prioridades, como também põe em xeque alguns pilares da doutrina Obama.

Um diplomata europeu, com ampla experiência nas relações transatlânticas, explicou há poucos dias em um encontro privado em Washington que a Ucrânia monopoliza todas as conversações com os representantes do Governo Obama. Seja qual for o tema tratado, tudo desemboca na Ucrânia.

Em pouco tempo a paisagem se transformou. Os paralelismos com a guerra fria estão na ordem do dia. O entusiasmo pela cooperação com Moscou e a criação de foros como o G-20, que além da Rússia incluiu a China e outras potências emergentes, foi substituído pelos debates sobre a volta da contenção, a doutrina inspirada em 1946 pelo diplomata americano George Kennan para frear o avanço da União Soviética sem recorrer às armas. O Plano Marshall – o programa de ajuda que estabeleceu as bases da reconstrução econômica da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial – foi a primeira tradução concreta da contenção.

“Esta é uma crise importante. Tem ocupado, sem dúvida, boa parte do tempo do presidente. Basta ver a quantidade de telefonemas que fez. E, para um presidente, o tempo é um bem muito apreciado”, disse, numa conversa telefônica, Steven Pifer, diplomata americano que foi embaixador na Ucrânia no Governo Clinton e agora integra o laboratório de ideias Brookings Institution. “Os Estados Unidos falavam em giro para a Ásia, mas com a Ucrânia vemos que a Europa também necessitará de atenção”, acrescentou.

“[A Ucrânia] é uma crise importante. Tem ocupado, sem dúvida, boa parte do tempo do presidente", disse um veterano diplomata

Obama é talvez o primeiro presidente dos EUA pós-II Guerra não marcado pela guerra fria e sem conexão emocional com a Europa. Mas a pressão russa sobre a Ucrânia voltou a situar a Europa no centro das preocupações de Washington.

Obama, que nasceu no Havaí e quando menino viveu na Indonésia, ia ser o primeiro presidente asiático. Mas, em sua última excursão asiática, que acabou na semana passada, quase dedicou mais tempo para falar da Ucrânia do que dos países que visitava.

Obama arriscou parte do crédito internacional com o chamado reset, quando “zerou” as relações com Moscou depois das tensões pela breve guerra em 2008 em outro país da órbita russa, a Geórgia. Mas o reset ficou enterrado quando a Rússia de Vladimir Putin deu asilo a Edward Snowden – o funcionário dos serviços de inteligência americanos que entregou à imprensa papéis secretos da Agência de Segurança Nacional dos EUA – e, meses depois, forças pró-russas tomaram o controle da região ucraniana da Crimeia.

Obama é um típico presidente “de retração”, escreve outro diplomata perito em Rússia, Stephen Sestanovich, no livro Maximalist (“Maximalista”), uma história da política externa americana dos anos 40 até hoje. Como Dwight Eisenhower nos anos 50 e Jimmy Carter nos 70, ele chegou ao poder depois de uma época de guerras sem vitória e excessos no exterior por parte de seus antecessores. Como Eisenhower e Carter, o atual presidente é um minimalista, em contraposição com maximalistas como George W. Bush.

“Em relação a qualquer presidente de retração, o êxito de sua política não se mede só por como os Estados Unidos conseguem se desfazer de velhos compromissos”, escreve Sestanovich. Isso Obama fez: os EUA se retiraram do Iraque e estão a ponto de dar por concluída a guerra no Afeganistão. Mas o êxito, segundo Sestanovich, também se mede por sua capacidade para evitar que a retirada desperte os fantasmas recorrentes do declínio, e para preservar a influência dos EUA. E aqui é onde costumam tropeçar os presidentes minimalistas.

As oscilações de Obama em relação à guerra síria – no ano passado, adiou uma planejada intervenção militar para, em vez disso, negociar com o regime de Bashar Assad por intermédio de Putin – foram vistas em Moscou como um sinal de debilidade, recordou Pifer, embora essa não seja a explicação principal da intervenção russa na Ucrânia.

Há épocas em que há desastres e dificuldades e desafios por todo o mundo, e não podemos solucionar todos eles”, disse o presidente dos EUA

“Para Vladimir Putin, a aproximação da Ucrânia com a União Europeia significou cruzar uma linha vermelha. Eu diria que os russos teriam tentado descarrilar e desestabilizar o governo ucraniano, independentemente de quem fosse o presidente dos EUA e de se lhes parecesse forte ou débil”, disse.

Os efeitos da crise ucraniana vão além da Europa. A resolução da guerra civil síria e as negociações para frear o programa nuclear iraniano requerem a cooperação russa. Os sócios asiáticos dos EUA observam com atenção cada gesto de Obama em relação a Putin e o interpretam como um sinal do que o líder americano fará ou deixará de fazer se a China os ameaçar.

A Ucrânia põe à prova o método Obama. Depois do fiasco no Iraque e da política unilateral de Bush, Obama optou pelo multilateralismo, a via das sanções em vez da guerra e a “liderança nos bastidores”, expressão cunhada por um de seus assessores durante os bombardeios de 2011 contra a Líbia, onde, num primeiro momento, franceses e britânicos assumiram a iniciativa. Será que esse método serve para o caso de Putin?

O historiador Frank Costigliola, professor da Universidade de Connecticut e editor dos diários de Kennan, acredita que os EUA já aplicam políticas de contenção com a Rússia e também com a China. O “pivô para a Ásia” é outra maneira de limitar a influência de Pequim na região Ásia-Pacífico.

Obama não gosta de falar em doutrina da contenção neste século. “Neste momento eu não necessito de um George Kennan”, disse.

“Isso significa que não necessita de um grande estrategista”, opinou Costigliola. Mas acrescentou: “Kennan e Obama compartilham uma preocupação pelos limites na política externa, por tentar fazer as coisas com um uso mínimo da força e procurar ser hábil em vez de dogmático”. Há uma semana, nas Filipinas, o presidente dos EUA disse quase o mesmo com outras palavras: “Há épocas em que há desastres e dificuldades e desafios por todo o mundo, e não podemos solucionar todos eles”.

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