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O peso de se chamar Mandela

Em nome do seu avô, Ndaba iniciou sua cruzada africana. O primeiro a fazer jus ao patriarca fala da grande promessa do seu continente e da briga familiar. Garoto-propaganda de uma marca catalã de óculos, ele assumiu o comando

Ndaba Mandela, neto do falecido ex-presidente sul-africano, durante sua visita a Madrid em meados do mês de abril.
Ndaba Mandela, neto do falecido ex-presidente sul-africano, durante sua visita a Madrid em meados do mês de abril.SAMUEL SÁNCHEZ

Ndaba Mandela, quarto neto de Nelson Mandela, fala como seu avô, cheio de aprumo, convicção, gravidade (e o ponto exato de afetação). “Somos um mercado de mais de um bilhão de consumidores. Temos a população mais jovem do mundo, com 70% abaixo dos 40 anos. As grandes corporações já nos esticaram o olho, a China nos busca para investir, porque a Europa e a América envelhecem. Como você vai me negar que a África está crescendo?”, provoca ele ao jornalista descrente, que não tem como não reparar na qualidade do moderno terno azul-marinho do seu interlocutor. Tem a estampa de Jay-Z, a elegância de Sean Combs, a arrogância de Kanye West, mas, sobretudo, o carisma de seu oupa Madiba. Com ele ninguém pode.

Um novo líder social africano à vista? “Não, não. Eu sou apenas o sujeito que dá aos jovens uma plataforma para sua voz ser ouvida, seja na arte, na tecnologia, na gastronomia, na moda… O destino dos africanos está nas suas próprias mãos. Se quiserem que eu os lidere, liderarei, mas são eles que precisam dizer isso.”

Não é uma má aspiração para quem, quando criança, desejava se tornar adulto para poder ir para a cadeia como o seu avô. “Que diabos, ele vivia como um rei, e na minha casa nem sequer tínhamos piscina!”, rememora ele, com sua risada grave. Neto e avô se conheceram no começo de 1990; ele mal tinha completado 7 anos e, aos 71, o pai da África do Sul democrática já contava as horas para a sua liberdade naquela casinha com jardim e piscina na penitenciária Victor Verster, em Paarl. Não, nunca houve grades entre eles. Das penúrias de Robben Island (“É aqui onde você vai morrer”, disseram ao detento número 466 que chegava à ilha-prisão em 1964) e Pollsmoor o menino só saberia bem depois. Inclusive nisso Madiba foi magnânimo, poupando-o das más recordações, diz Ndaba.

Ele me pressionava para ser o melhor. ‘Você é o meu neto, as pessoas vão prestar atenção em você’, dizia.”

Segundo rebento de Makgatho – o segundo filho do primeiro matrimônio de Nelson, com Evelyn Mase –, Ndaba (Johanesburgo, 1983) é na verdade o primeiro dos herdeiros a fazer jus ao sobrenome do patriarca de tão vasta dinastia. O falecido presidente deixou duas das suas três esposas, quatro dos seis filhos, 17 netos e 12 dos seus 14 bisnetos, uma mistura familiar muito delicada, campo minado de tensões e rixas. “É o que acontece quando alguém se casa e se divorcia três vezes. As mulheres querem que os filhos de cada um dos matrimônios sejam considerados os legítimos, brigam por seu próprio espaço, e essas lutas se transferem para os filhos”, concede o neto dileto, que em seguida desculpa o seu avô: “A divisão na nossa família era, e é, real, mas talvez tenham sido suas esposas [Evelyn, Winnie Madikizela e Graça Machel] que propiciaram isso, não ele”.

Eis aí o xis da questão, sempre repetida por seus descendentes: como pai da pátria, Nelson Mandela foi excepcional; como pai de família, um fracasso. Ndaba garante: “Em nossa cultura, a família é o mais importante, e eu vi como a dedicação do meu avô à política o afetava negativamente nesse sentido. Estava disponível para todo mundo, menos para seus filhos. É verdade que as coisas mudaram, que a situação do país é outra, e hoje é possível juntar política e família sem maiores problema. Mas a luta interna continua aí. No meu caso, o desafio nesse novo regime de consumismo, de capitalismo, em que a pessoa quer mansões, carros, a última moda, ser cool e se encaixar, passa por contribuir para o progresso da minha gente, devolver o que ela me deu. E isso é algo que não posso dizer que eu tenha escolhido”. O empreendedor/empresário descolado, que em fevereiro finalmente entrou para a política como conselheiro da ala juvenil do Congresso Nacional Africano (CNA, o partido do seu avô, ainda hoje no comando do Governo sul-africano), refere-se ao fato de que abraçar o legado de Mandela era uma questão de responsabilidade. “Devo dizer que o meu entorno foi privilegiado. E por isso Madiba me pressionava tanto, para ser o melhor em tudo. ‘Você é meu neto, as pessoas vão prestar atenção em você’, me dizia. Ele gostava da disciplina e, possivelmente por isso, impunha muita distância entre ele e seus filhos e netos. O curioso é que eu nunca soube muito bem a que queria me dedicar. Comecei a cursar psicologia, mas não gostava de ir à aula, então era reprovado e acabaram me expulsando. Meu primo Kweku me incentivou então a experimentar ciências políticas, e deu certo [graduou-se na Universidade de Pretória], embora não tenha tido clareza disso até que tive a oportunidade de viajar ao exterior com meu avô, em 2009: percebi o pouco ou nada que toda aquela gente importante que eu conheci sabia de nós, da África. Assim começou a minha viagem.”

Empreendedor social – como gosta de se apresentar – e filantropo, Ndaba foi recentemente apontado como um dos 28 “homens da mudança em 2014” pela rede norte-americana Black Entertainment Television e nomeado vice-presidente do Conselho Juvenil Pan-Africano, mas os títulos, diz, não são nada sem uma missão. A sua: que seus patrícios afinal acreditem no “sonho africano” inspirado por Mandela. Estancada a política, ele contribui para a revolução econômica com sua fundação, a Africa Rising, que criou em 2009 com seu primo Kweku Mandela Amuah. Na sua pauta: desde programas educacionais em zonas rurais até as campanhas midiáticas para fomentar o diálogo entre países, e inclusive uma rede social, chamada Mandela.is. Procurando a máxima visibilidade, acaba de se associar à fábrica de óculos catalã Etnia Barcelona, que doará à fundação 5% dos lucros da sua nova coleção de óculos de sol, a Wild Love in Africa. O premiado fotojornalista Steve McCurry, da National Geographic, fez as imagens da campanha na reserva natural sul-africana de Lindbergh Lodge. “Com esta colaboração, apresentava-se para nós a ocasião perfeita para demonstrar como se fazem as coisas, além de ser uma maneira de mostrar nosso continente e de inspirar os investidores”, explica. Orgulho, história e herança são palavras recorrentes em seu discurso.

Jonas Ohentse, artista de Wallmaranstaad, 52 anos, com uns óculos de sol da coleção Wild Love in Africa.
Jonas Ohentse, artista de Wallmaranstaad, 52 anos, com uns óculos de sol da coleção Wild Love in Africa.STEVE MQCURRY

A imensa fortuna da família de Mandela, acumulada nas últimas duas décadas na forma de investimentos em cerca de 200 empresas que operam em setores díspares (imobiliário, ferroviário, minerador, farmacêutico, de moda, entretenimento), está oculta em uma rede composta por pelo menos 20 entidades financeiras criadas pelo ex-advogado familiar. Algumas destas entidades figuram também como proprietárias de luxuosos imóveis nos bairros mais sofisticados de Johanesburgo. Some-se o a tudo isso a contínua troca de acusações entre os membros da família nos últimos dois anos – um tal de “você é filho ilegítimo”, “seus filhos também”, “perguntem ao motorista dele”, “você não tem o direito de explorar o sobrenome Mandela”, “você é viciado em drogas”... – e teremos o escândalo servido. No centro da polêmica, sempre, Mandla Mandela, o rebelde irmão (ou meio-irmão, depende) mais velho de Ndaba. “O nosso é um clã de chefes, de senhores. Somos mediadores, conselheiros, e nosso trabalho é manter as relações entre as famílias da nossa comunidade. Meu avô nos ensinou a tratar a todos de igual para igual. Dele aprendemos a não julgar ninguém por sua condição, por sua origem ou por seu aspecto. Infelizmente, algumas pessoas, como meu irmão, se consideram melhores ou mais importantes que outras. Todos nos alegramos por ele quando aceitou a chefia dos xhosas [a tribo à qual pertence a família], até que, cinco anos mais tarde, descobrimos que ele havia feito isso pelas razões erradas. No ano passado, nossa paciência se esgotou quando ele transferiu sem permissão para o seu feudo de Mvezo os corpos de vários familiares mortos que estavam enterrados na casa familiar de Qunu. Esse é o meu irmão, que quer ser líder do clã, mas que não o respeita. Não sabe o que significa ser líder, não sabe que para ser chefe é preciso se aconselhar no interesse do bem comum, não do seu próprio. Minha tia Makaziwe, com meus outros irmãos e eu, terminamos por denunciá-lo, e ele foi condenado a devolver os corpos ao seu lugar original. Espero que tenha aprendido a lição”, conta, sem se alterar.

Agora que a família tomou pulso da situação, falta apenas esclarecer se convém explorar comercialmente da marca Mandela. Glamorização do nome ou espólio de mau gosto? Ndaba sabe como fazer uma limonada desse azedo limão: “E por que não simplesmente agregar valor ao nome? Tem uma coisa que as pessoas não entendem: no passado, muitos quiseram ganhar dinheiro à custa do sobrenome Mandela, deixando a família à margem. E agora que o clã tem a faca e o queijo na mão, nos olham com desconfiança. Por que os estranhos podem tirar proveito econômico, e os próprios, não? A família sofreu durante muitos anos por causa disso. Eu acredito que, enquanto não se desvirtuar a mensagem do meu avô, não há problema. Odiaria que Mandela fosse o novo Che Guevara, uma camiseta sem significado”.

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