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O Brasil ganha a corrida global da regulação da Internet

Após uma aprovação express no Senado, Dilma Rousseff sanciona em menos de 12 horas o Marco Civil da Internet, confirmando a expectativa de que o apresentaria como um troféu

Manifestantes usam máscaras de Edward Snowden.
Manifestantes usam máscaras de Edward Snowden.Bosco Martín

Após uma aprovação express, uma sanção express. Pouco mais de 12 horas depois do sinal verde dado ao Marco Civil da Internet no Senado, a presidenta Dilma Rousseff sancionou o projeto nesta quarta-feira, confirmando a expectativa de que o apresentaria como um troféu na Copa do Mundo da rede, o NETmundial – Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet, em São Paulo.

Rousseff aproveitou os holofotes para endossar o Marco Civil no próprio palco, antes de dar início ao seu discurso na mesa de abertura do megaevento. O projeto, considerado uma Constituição da rede, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres a usuários e provedores no Brasil.

Além de agradecer os senadores pela aprovação na noite anterior do Marco Civil em “tempo recorde”, Rousseff aproveitou o discurso para lembrar a importância do sinal verde ao projeto no contexto da espionagem norte-americana de que foi vítima, revelada em meados de 2013.

As revelações (de Snowden) sobre os mecanismos de espionagem e de monitoramento coletivo provocaram repúdio na opinião pública brasileira e mundial. (Os mecanismos) foram inaceitáveis e  continuam sendo. Eles atentam contra a própria natureza da internet, que é aberta, plural e livre”, afirmou.

A presidenta aproveitou ainda para defender uma governança multilateral, multissetorial, democrática e transparente da rede. “A participação de governos nesse processo deve ocorrer em pés de igualdade entre si, sem que um país tenha mais peso que os outros”, definiu.

Reafirmando que os direitos das pessoas offline devem ser também respeitados online, a presidenta reafirmou que o grande objetivo do evento é imprimir aos debates sobre o tema um maior sentido de urgência, respondendo a um anseio global.

"A internet que queremos só é possível em um cenário de respeito aos direitos humanos, em particular, à privacidade e à liberdade de expressão", afirmou. "Tão importante quanto a renda é o acesso à internet e a garantia de que uma sociedade que tenha opinião própria se expresse.'

A internet que queremos só é possível em um cenário de respeito aos direitos humanos, em particular, à privacidade e à liberdade de expressão

Dilma Rousseff

O chefe da delegação norte-americana, Michael Daniel, expressou, durante a abertura do encontro, seu desejo de reconquistar a confiança dos internautas: "Queremos devolver a confiança ao internauta”, assegurou Daniel. Pouco faltou-lhe para pedir perdão. Por outro lado, Washington está disposto a ceder parte de seu poder no Governo sobre a Internet, embora não queira perder seu controle.

“Temos que devolver a confiança ao usuário de Internet danificado por revelações não autorizadas”, apontou Daniel, “sem fazer referência direta à divulgação de documentos filtrados pelo ex-analista da CIA, Edward Snowden. “Como manifestou em janeiro o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, estamos comprometidos com uma foco multissetorial para a governança da Internet. Os países têm que fixar os princípios para a inovação, o desenvolvimento econômico e a defesa dos direitos humanos”, destacou Daniel.

Berlim e Brasília, além da União Europeia e a Assembleia Geral da ONU, bem como alguns países latino-americanos, querem impor regras que impeçam a supremacia de Washington na rede.

“Acredito que o Brasil esteja na vanguarda da internet. A lei do Marco Civil mostra que esses assuntos preocupam o país há seis anos”, diz Camille François, pesquisadora da Universidade Harvard (EUA) que trabalhou, entre outros, para o Google e a Agência norte-americana de Projetos de Pesquisa Avançados de Defesa (DARPA).

“É uma discussão que reuniu muitos especialistas e acredito que o mundo tem muito para aprender”, acrescentou.

O presidente norte-americano, Barack Obama, e o Departamento de Comércio dos EUA anunciaram no dia 15 de março sua disposição de renunciar à autoridade exercida sobre a atribuição dos domínios em internet através do ICANN, a Corporação de Internet para a Atribuição de Nomes e Números.

Trata-se de uma organização sem fins lucrativos com sede na Califórnia, para dar lugar em 18 meses a um sistema de gestão global, embora já tenha anunciado que não pretendiam deixá-lo nas mãos de outro grupo de países.

Além de marcar a sanção do Marco Civil da internet no Brasil, o NETmundial também é simbólico por ocorrer ainda no ano em que se completa um quarto de século da criação da rede mundial de computadores.

Um documento que reúne os principais pontos das quase 200 contribuições de conteúdo recebidas pelo evento guia as discussões nesta quarta e quinta-feira. Entre os focos em debate estão os princípios de governança da internet, como os de liberdade de expressão, associação, privacidade, acesso à informação e segurança.

O inventor da World Wide Web, Tim Berners-Lee, que participou da mesa de abertura, já havia classificado como de "vanguarda" a chamada Constituição brasileira da internet. Está sobre a mesa, segundo ele, a definição do futuro da internet pelos próximos 25 anos.

Dizendo que o Marco Civil brasileiro é um presente para se celebrar o aniversário da rede,

Wu Hongbo, representante da ONU, destacou ainda que apenas “de baixo para cima será possível fomentar uma internet acessível, aberta, segura e confiável”.

O representante de Ban Ki-moon enviado a São Paulo reforçou que apenas um terço da população mundial tem acesso à rede e aos conhecimentos e ferramentas que ela disponibiliza, uma lacuna que necessita ser preenchida.

"A internet pode reforçar os esforços contra a pobreza, combate à desigualdade e ajuda a proteger e renovar os recursos do planeta."

No discurso preparado para o evento, a representante da União Europeia no debate, Neelie Kroes, chefe da Comissão de Desenvolvimento Digital do bloco, avaliou que, antes de mais nada, deve-se criar uma mudança positiva baseada nos pontos em comum, e não nas diferenças.

Kroes também fez uma chamada aos participantes: estamos aqui para uma mudança e atender à chamada de Rousseff em Nova York ou estamos aqui para perder tempo?".

Nestes dias "estarei fungando no pescoço de todo mundo até que tenhamos uma discussão sobre ações concretas", acrescentou a representante da UE em seu discurso escrito, ao qual teve acesso o EL PAÍS.

Após cumprimentar o avanço brasileiro por meio do Marco Civil, Kroes destacou cinco pontos de vista em comum entre os participantes do debate.

Entre eles estão o de um processo de transição sobre as funções da Autoridade para Atribuição de Números da Internet (IANA, na sigla em inglês), o fortalecimento do fórum de governança da internet e a adoção de sistemas jurisdicionais com sistemas transparentes.

PROTESTO

Além de um problema no sistema de som, a abertura teve como pano de fundo uma manifestação. Alguns ativistas empunharam uma faixa pedindo a retirada do polêmico artigo 15 do Marco Civil pela presidenta antes da sanção, enquanto outros chegaram a usar máscaras com o rosto de Snowden.

O artigo 15 é visto como uma ameaça à liberdade na rede por criar a obrigação de as empresas guardarem dados de aplicação dos usuários por seis meses para fins investigativos.

Pedro Eckman, coordenador do Intervozes, Coletivo Brasil de Comunicação Social, já havia alertado ao EL PAÍS que "a medida enfraquece a proteção da privacidade, invertendo a presunção de inocência ao grampear obrigatoriamente as atividades dos internautas de forma indiscriminada e massiva."

O Marco Civil da internet foi aprovado nesta terça-feira à noite pelo plenário do Senado sem modificações em relação ao texto avalizado há menos de um mês na Câmara dos Deputados.

O texto já havia recebido sinal verde pela manhã das comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) do Senado.

Na Câmara, os deputados deram sinal verde à iniciativa com modificações, após três anos de discussão e intensa crise entre os membros da base aliada ao governo federal.

As substituições em relação à iniciativa original proposta pela sociedade civil são motivo de críticas e grande desconfiança entre os ativistas pelos direitos na rede. Alguns especialistas ouvidos pelo EL PAÍS na ocasião alertaram para o desvio de rota em relação ao projeto original.

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