_
_
_
_
_
CAMPOS DE EXTERMÍNIO NA COREIA DO NORTE

Um desertor norte-coreano: “Delatei minha mãe por uma ração de arroz”

A ONU documenta crimes contra a humanidade na Coreia do Norte Nesse país de 25 milhões de habitantes, existem cerca de 100 mil presos em campos de concentração

As atrocidades norte-coreanas desenhadas por um ex-prisioneiro.
As atrocidades norte-coreanas desenhadas por um ex-prisioneiro.

A Coreia do Norte, esse país mega-hermético que exerce uma estranha fascinação por sua estética de história em quadrinho e as extravagâncias de seus líderes, é cenário de crimes contra a humanidade que foram documentados por uma comissão de investigação das Nações Unidas que escutou 80 testemunhas, entre prisioneiros de 80 antigos campos de prisioneiros políticos, desertores e especialistas. Os investigadores apresentaram suas conclusões nessa segunda-feira em Genebra (Suiça). Essas incluem a história de Shin Dong-hyuk, de 30 anos, que contou sua vida aos enviados da ONU no dia 30 de agosto passado, numa audiência pública em Seul (Coreia do Sul): nasceu em um campo de prisioneiros políticos concebido por um casal que foi obrigado a se unir, a primeira coisa de sua infância de que se lembra foi uma execução, tinha 13 anos quando delatou sua mãe depois de ouvi-la sussurrar um plano de fuga e 14 quando teve que assistir ao seu enforcamento público e ver também como fuzilavam seu irmão mais velho. Aos 22, conseguiu escapar do denominado campo 14, um gulag de 125 quilômetros quadrados que fica a 65 quilômetros da capital, Pyongyang. Nesse país de 25 milhões de habitantes, existem cerca de 100.000 internos em campos de concentração.

“Eu informei o guarda sobre os seus planos (de fugir) porque eram as normas. Estava realmente orgulhoso de mim mesmo. Pedi ao meu supervisor para me recompensar, para me dar uma ração completa de arroz para encher o estômago”, relatou Shin naquela tarde em Seul. Até os 22 anos mal sobreviveu, oprimido sempre por uma fome atroz, resultado da ração diária: 400 gramas de mingau de milho. Tanta fome que, se o guarda de plantão o autorizava, comia ratos vivos.

A novidade desses relatos não é tanto seu conteúdo – Shin, testemunha número um da ONU, publicou sua autobiografia Fuga do Campo 14 (Ed. Intrínseca) em 2012 como fizeram outras dezenas de fugitivos –, mas sim o fato de contarem com o aval do organismo multilateral. As 372 páginas do relatório são um detalhado catálogo de um sistema repressivo que utiliza sistematicamente a tortura, a falta de comida, os assassinatos, os sequestros e os desaparecimentos para manter o povo controlado.

“A gravidade, a escala e a natureza das violações dos direitos humanos (documentadas) não têm paralelo no mundo contemporâneo”, dizem os investigadores. A Coreia do Norte, que não lhes permitiu entrar no país, rejeitou “drástica e totalmente” todas as acusações, que atribuiu às maquinações dos EUA, EU e Japão.

Os horrores “não tem paralelo no mundo atual”, diz um dos investigadores

O chefe da equipe, o juiz australiano Michael Kirby, explicou em sua audiência que as atrocidades descritas têm numerosos paralelismos com os crimes perpetrados pelos nazistas. Como exemplo, lembrou o relato de um prisioneiro, cujo trabalho incluía incinerar os cadáveres dos internos mortos de fome e usar as cinzas como fertilizante.

O juiz Kirby instou a comunidade internacional a passar para a ação. E enquanto brandia o relatório numa mão lembrou-lhes que não cabe apelar ao desconhecimento como se fez depois da Segunda Guerra Mundial. “Agora, a comunidade internacional sabe. Não existe desculpa para não agir porque não sabíamos”. A comissão instou o Conselho de Segurança a enviar as acusações para a Corte Penal Internacional. O maior entrave para isso seria o provável veto da China, principal aliado do regime que Kim Jong-un herdou de seu pai e este de seu avô. A comissão Kirby pretende que Kim e centenas de chefes do aparato de segurança prestem contas diante da justiça internacional por crimes contra a humanidade. Também recomendaram sanções individualizadas da ONU contra os altos cargos civis e militares pelos crimes mais graves.

Os depoimentos públicos e os privados (duzentos) incluíram alguns de antigos guardas. Ahn Myong-chol contou como um de seus companheiros matou um preso a pauladas no campo 22 por comer demasiado devagar. O assunto foi investigado, mas o guarda não foi castigado e sim premiado com “o direito de ir à universidade”.

Lealdade política para sobreviver

A ditadura dos Kim organizou toda a sociedade norte-coreana em função do grau de lealdade das famílias. Só as de fidelidade absoluta ao longo dos anos disfrutam do privilégio de viver em Pyongyang. E, como constatam os investigadores da ONU, “o monopólio do acesso à comida foi usado como instrumento importante para garantir a lealdade política”.

A fome que matou mais de um milhão de norte-coreanos (quase um em cada 20) em meados dos anos 90 resultou na proliferação de mercados informais que aliviaram a escassez de alimentos. Entretanto, a comissão de investigação da ONU frisa que “a distribuição da comida priorizou os que eram úteis para a sobrevivência do regime político, em detrimento daqueles considerados sacrificáveis”.

Os prisioneiros políticos recebem umas rações tão exíguas que o instinto de sobrevivência é mais forte do que o risco de ser imediatamente executado. Shin, a testemunha número um, contou à comissão que umas duas vezes por semana os guardas escolhiam uma criança e a revistavam para ver se havia surrupiado alguns grãos de cereal.

Os norte-coreanos estão divididos em castas desde que nascem: os afins, os duvidosos e os hostis. Basta que um parente tenha tentado escapar ou lutar no grupo errado na guerra para que toda a família seja considerada hostil. “Nasci criminoso e morreria criminoso. Esse era o meu destino”, disse uma testemunha. Isso influi nas rações. Os norte-coreanos mais desesperados fogem para a China, fronteira menos difícil de cruzar do que a zona desmilitarizada. A recompensa é imensa, mas o risco também porque Pequim repatria muitos, embora a ONU lhe recorde que isso é ilegal. Os que empreendem a fuga para serem livres (e comer até se fartar) se arriscam a que os matem, os prendam ou torturem. A eles e a suas famílias.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_