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Os Andes são bons de garfo

Restaurantes e chefs da região andina, convidados da última edição de Madri Fusión, reivindicam seus produtos e sua importância

Tommaso Koch
Michelangelo Cestari e Kamilla Seidler, chefs do restaurante Gustu, em La Paz, Bolívia.
Michelangelo Cestari e Kamilla Seidler, chefs do restaurante Gustu, em La Paz, Bolívia.

Os cavalos não aguentavam. Alguns morriam por falta de oxigênio. Porque transportar prata por caminhos de grandes alturas também não é tarefa que todo animal suporte. No entanto, as lhamas sim. De modo que a elas recorreram aos conquistadores espanhóis para transportar suas preciosidades bolivianas de Potosí a La Paz. E dessas preciosidades também está o restaurante Gustu, séculos depois e com objetivos diferentes. Riqueza, sim, mas do paladar. O centro aberto pelo cofundador da Noma Claus Meyer em La Paz há nove meses respeita a regra do estritamente  zero quilômetro: só trabalha com produtos bolivianos crescidos ao seu redor. Como, precisamente, as lhamas.

Sua carne e seu leite são algumas das especialidades que servem a 3.700 metros de altura a dinamarquesa Kamilla Seidler e o venezuelano Michelangelo Cestari, os dois jovens chefs que Meyer pôs à frente de sua última pérola. Com um objetivo: cozinha criativa a partir da comida de toda vida do boliviano. Embora a recém terminada a XII edição do congresso gastronômico Madri Fusión tenha deixado claro que a missão do Gustu tem aliados por todo o eixo andino. “Separam as fronteiras políticas, mas temos a mesma terra, a mesma linguagem, os mesmos pensamentos”, esclarece Virgilio Martínez, dono e cozinheiro do Central, em Lima, o 4º melhor restaurante da América Latina segundo a última lista da revista Restaurant.

Nenhum dos cozinheiros, para começar, supera os 36 anos. Todos usam unicamente o que sua terra produz e mantêm estreitas relações com pequenas comunidades de catadores e produtores nativos. Até trabalham com biólogos e antropólogos. O desafio é levar à mesa o sabor do país. “Conhecemos os animais que vamos te servir. Quero que as pessoas gostem do chão da comida que servimos”, acrescenta Rodolfo Guzmán, 36 anos, há sete anos à frente do Boragó , em Santiago do Chile (oitavo na lista da Restaurant ).

Assim, diante do cliente do Central podem aparecer batatas recolhidas a 4.800 metros no Peru. E no Boragó é servido um prato que segue durante um ano a evolução da árvore chilena peumo. São muitas, afinal de contas, as histórias que narram as exquisiteces destes restaurantes. Há produtos que procedem da selva fria chilena, um “parque jurássico onde há frutos que desaparecem e voltam ao passo de cinco anos”, destaca Guzmán. E Martínez viaja duas vezes ao mês para os Andes para voltar “carregado” de novos feitiços para os paladares alheios.

Com esta receita, e alguns menus que oscilam entre os 50 e os 130 dólares (120 a 310 reais), acabaram por cozinhar um sucesso mundial. Por enquanto, contam com reservas para mais de um mês e misturam público nacional e estrangeiro. No Gustu, por exemplo, o boliviano ganha na sala e nos fogões: 65% dos clientes são nativos, prometem Seidler e Cestari. Guzmán, por outro lado, segue tendo mais dificuldades para convencer os chilenos: do seu público, por enquanto, 75% são estrangeiros.

No fundo, o dono de Boragó sempre brigou com os problemas. Se dedicou à cozinha depois de um acidente que travou sua carreira como esportista de esquí aquático. Conta que esteve a ponto de fechar seu restaurante quatro vezes e que, ao menos no começo, encontrou resistência e ceticismo no Chile. Outro tanto ocorreu aos cozinheiros de Gustu. Embora eles mesmos o entendam. “A gente podia pensar: ‘Quem é você? Por que vem da Dinamarca para cozinhar pratos bolivianos?”, afirma Seidler.

Pelo visto, conseguiram ganhar a confiança da crítica -Food & Wine perguntava se trata-se do "melhor restaurante novo do mundo"- e do público. Talvez seja porque suas cervejas artesanais seja trazida por uma senhora de um estabelecimento a 20 metros do restaurante. Talvez porque Cestari seja tão fascinado pela gastronomia que leva tatuadas em seu corpo as receitas do crème brûlée e dos macarons de chocolate. Ou talvez pela quantidade de projetos que rodeia o Gustu: um festival gastronômico, um movimento que põe em contato ONG, produtores, cozinheiros e demais protagonistas da gastronomia, várias escolas para futuros chefs e um laboratório de alimentos bolivianos. “Pensamos que podemos mudar o mundo através da comida”, reza um ambicioso lema no site do Gustu.

Guzmán formula um conceito parecido, embora de forma mais poética: “O restaurante é um suporte. É importante que se entenda o valor da comida”. O chileno se diz convencido de que seu estabelecimento gerou “uma mudança importante”. Mais de modo geral, todos acham que o grande momento da gastronomia sul-americana está chegando. Segundo Martínez, “América Latina tem muito a oferecer. Temos produtos únicos e muito diversos”. Das lhamas à batatas, é sem dúvida uma cozinha de altura. Literalmente.

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