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A polícia associa a morte de seis jovens em Portugal a um trote universitário

A Universidade Lusófona de Lisboa tem uma comissão de alunos veteranos dedicada a organizar os trotes O único sobrevivente é o responsável pelo grupo

Antonio Jiménez Barca
Praia de Meco, cerca de Lisboa, onde morreram os seis jovens.
Praia de Meco, cerca de Lisboa, onde morreram os seis jovens.FRANCISCO LEONG (AFP)

Na madrugada de 15 de dezembro, uma onda descomunal que chegou à praia de Meco (a 40 quilômetros ao sul de Lisboa) levou a vida de seis estudantes que se encontravam nesse momento ali, vestidos com as típicas capas negras universitárias lusas. Só o sétimo integrante do grupo, João Gouveia, de 23 anos, sobreviveu. Buscou na areia o gorro onde guardava o celular e chamou a polícia, que o achou, segundo revelou o jornal Expresso, meio afogado, e com espuma de mar na boca. Horas depois, já no hospital, teve alta, quase ao mesmo tempo em que o primeiro cadáver aparecia: Tiago Campos, de 21 anos, morreu pelo deslocamento do pescoço causado pelo brutal golpe da onda.

O país inteiro comoveu-se com a tragédia, que todos creditaram, a princípio, à fatalidade, à má sorte e à mortífera potência do mar nessa região. Depois dos funerais e das homenagens, e depois do silêncio um tanto estranho do sobrevivente (que se limitou a contar nos primeiros momentos aos policiais que uma onda de surpresa os encurralou) os pais dos outros jovens começaram a se perguntar o óbvia: O que faziam eles a uma da madrugada de uma noite gelada de inverno vestidos com a capa universitária em uma praia deserta?

Há alguns dias, cresce a certeza de que todos foram ali para participar de um trote elaborado, reservado aos estudantes veteranos membros de uma hierarquizada sociedade secreta que se encarrega, por sua vez, de impor trotes aos recém chegados.

Isto levantou uma fúria polêmica sobre os trotes, uma prática comum que prospera em Portugal graças à aceitação de grande parte dos estudantes, à permissividade das autoridades acadêmicas e à fraqueza dos responsáveis políticos.

Todos os que estavam nessa praia de Meco nessa noite estudavam na privada Universidade Lusófona de Lisboa, e pertenciam à Comissão Organizadora da Prática Acadêmica (COPA), isto é, a comissão organizadora acadêmica dos trotes. O jovem que sobreviveu era o líder desta comissão, o denominado Dux (Duque), isto é, o grau mais alto na hierarquia.

Os sete alugaram uma casa situada a alguns quilômetros da praia para passar o fim de semana. Alguns vizinhos, segundo vários meios portugueses, viram alguns, no jardim, fazendo flexões às ordens do Duque, que passeava sempre armado de uma colher de madeira, símbolo de autoridade neste mundinho dos trotes. E o dono de um quiosque lembrava à revista Sábado ter visto em sete jovens a caminho do mar em fila indiana a meia noite.

A cadeia de televisão TVI fez, a base de depoimentos de outros estudantes que aparentemente celebraram cerimônias parecidas, uma surpreendente reconstrução do que passou nessa noite. Os seis estudantes que morreram, que deviam passar por um rito inicial para subir um degrau na hierarquia desta comissão de trotes, se colocaram, ombro com ombro, de costas ao mar, com os olhos vendados. Na frente deles, sem venda, ficou o Duque, isto é, João Gouvela.

Baseando em um conto inicial de Fernando Pessoa, A Hora do diabo, no qual Satanás aparece a uma mulher numa noite de lua cheia (15 de dezembro era também lua cheia), Gouvela começou a fazer perguntas aos outros. A cada vez que um errava, dava um passo para trás. Tudo isto durou mais de uma hora. Os repórteres da TVI afirmam que, depois, alguns estudantes mais, em acordo prévio com o Duque, se deslizaram até chegar a esse ponto da praia, se aproximando sem fazer ruído, para sussurrar nos ouvidos dos que estavam com as vendas e deixá-los com ainda mais medo e desorientados.

Uma onda arrastou os jovens durante um rito de iniciação

Se foi assim, há mais testemunhas da tragédia que mantém em polvorosa o país e o jovem que chamou desesperado à polícia depois que uma onda levou seus colegas para o fundo do mar não é o único que pode dizer o que aconteceu.

A Policía Judicial interrogará Gouvela na semana que vem. De seu depoimento se deduzirá se, efetivamente, tudo foi produto de um trote estúpido celebrada em um dia nefasto e, se sim, o grau de coação que sofreram os neófitos.

As famílias das vítimas se apresentarão no caso, e o advogado delas, Vítor Parente Ribeiro, já advertiu que deverá ser investigado o envolvimento e a responsabilidade da Universidade Lusófona.

Enquanto isso, os defensores dos trotes tentam separá-las do que ocorreu na praia de Meco. Entre eles não há apenas estudantes e autoridades universitárias, que exaltam este tipo de prática como uma forma de integração. A ministra da Justiça, Paula Teixeira dá Cruz, afirmava há alguns dias: “Não faz sentido proibir brincadeiras que, em determinados casos, são bonitas. Proibir não é a solução”. Alguns de seus partidários exemplificavam com trotes que consistem em ir de porta em porta recolhendo alimentos para pessoas pobres.

As autoridades políticas e acadêmicas são permissivas

Mas este tipo de prática é anedótica. Uma demolidora reportagem de Bruno Moraes Cabral, titulada Praxis, rodado em 2010 em várias cidades portuguesas, registrou algumas destas piadas (só as que os novatos e veteranos permitiram registrar). Muitas toleradas pela universidade, já que acontecem nos campus ou dentro das faculdades, consistiam no seguinte: simular atos sexuais com outro novato à vista de centenas de estudantes; obrigação de ficar com o dedo na boca durante toda uma manhã; comer pimentas de pé com uma peruca de palhaço na cabeça; responder a perguntas idiotas sem solução que acarretam invariavelmente em um castigo. Em outros casos, as calouradas aconteciam no campo: andar de quatro em um estábulo ao lado de vacas ou passar por um caminho cheio de barro e esterco. Sempre, em todos os casos, diante do olhar dos veteranos, vestidos com as inevitáveis capas negras.

O ministro de Educação, Nuno Crato, reuniu-se nestes dias com associações de estudantes para tratar do assunto sem adiantar por hora nenhuma medida concreta. Mário Soares, veterano político socialista português de 90 anos, em um artigo publicado no Diário da República, foi bem mais claro e taxativo: “As calouradas são incompreensíveis e inaceitáveis (…) uma espécie de fascismo. Deveriam ser proibidas”.

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