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Seja europeu por um milhão de euros

Bruxelas observa alarmada como países da UE vendem passaportes para milionários estrangeiros

O primeiro-ministro de Malta, Joseph Muscat.
O primeiro-ministro de Malta, Joseph Muscat.DARRIN ZAMMIT LUPI (REUTERS)

Há poucas coisas que os mais ricos do mundo não podem comprar. E, há poucos meses, outras duas coisas deixaram essa lista: a nacionalidade e a residência europeias. Diante da indignação de Bruxelas, com cerca de um milhão de euros é possível comprar um passaporte perfeitamente legal em Malta. Espanha, Portugal, Chipre ou Grécia são outros países nos quais com dinheiro é possível tornar-se residente ou nacionalizar-se. As crises financeiras e a ânsia de recuperação de alguns sócios da UE são os responsáveis por fazer com que valores e consensos até agora intocáveis comecem a mudar. A Comissão e o Parlamento Europeu lutam agora para preservar o espírito da União, enquanto os investidores abrem a carteira e se preparam para estrear seus passaportes.

Nos escritórios de advogados que assessoram as grandes fortunas do mundo, empilham-se documentos que tentam organizar o bazar de passaportes europeus analisando país por país quanto custa a residência e a nacionalidade em cada um. Ao menos uma dezena de Estados oferecem os já denominados “programas de residência por investimento”.

“Assistimos a uma competição entre países da UE para ver quem facilita mais aos ricos e quem vende mais permissões de residência”, afirma Kinga Göncz, parlamentar europeia socialista húngara. “É um fenômeno que move muito dinheiro e que é muito perigoso porque atenta contra os valores europeus que estabelecem a não discriminação entre as pessoas. Por um lado, colocamos todos os tipos de barreiras aos refugiados para que não entrem. E, por outro, abrimos as portas aos extremamente ricos. Isto é algo que choca com o espírito do projeto”.

Os mecanismos para comprar papéis agrupam-se em três grandes categorias. Na primeira, estão os países como Malta ou Chipre, nos quais o passaporte pode ser conseguido pela mudança de investimentos ou dinheiro. Depois, há uma longa lista de Estados —entre eles, Portugal, Espanha, Letônia, Áustria ou Reino Unido— nos quais, por meio da aquisição de uma casa ou investindo em dívida pública ou em um negócio, se obtém a residência. E normalmente, após uma determinada quantidade de anos, a residência abre a porta à nacionalidade. Por último, estão os casos considerados de interesse nacional, pressuposto pelo qual até 22 países da UE concedem a nacionalidade a esportistas, artistas ou investidores que consideram benéficos para o país.

“Assistimos a uma competição para ver quem torna mais fácil aos ricos”, diz uma parlamentar europeia

O fenômeno dos vistos de ouro disparou no último um ano e meio em suas três modalidades. Não existem cifras globais, mas as empresas que gerenciam estas permissões confirmam que se trata de um mercado em ascensão. “Nos últimos anos, observamos um aumento constante de pedidos, sobretudo porque cada vez mais países oferecem esta possibilidade”, explica Christian H. Kälin, responsável pelo departamento de residência e cidadania da Henley & Partners, uma empresa com sede nas ilhas Jersey que é referência para as grandes fortunas em busca de passaporte. Trata-se, além disso, da empresa eleita por Malta para gerenciar seu programa para investidores. Kälin detalha por e-mail que seus clientes procedem de países da África, Leste europeu e do Oriente Médio, entre outros. E que o que buscam é “flexibilidade, segurança e ter opções para investir, fazer negócios e viver na Europa”. Portugal e Malta são os dois países preferidos por seus investidores. O Ministério do Interior português calcula em 470 os estrangeiros que se beneficiaram do programa em 2013. A maioria deles procedem da China, Rússia e do Brasil. Consultado, o Ministério do Emprego espanhol assegura que por enquanto não tem dados relativos à Lei de Empreendedores aprovada no semestre passado e que inclui facilidades aos milionários para entrar na Espanha.

Um gestor de grandes fortunas da região da ex-União Soviética instalado na Europa e que prefere não se identificar explica o funcionamento do processo. “Para eles [as grandes fortunas], é bem mais cômodo ter a permissão de residência porque assim quando vêm fazer negócios não têm que pedir visto. Além disso, como, por exemplo no caso dos russos, é uma questão de prestígio social”. O banqueiro calcula em cerca de 10.000 ou 15.000 euros o que seus clientes pagam às agências de advogados que fazem o trâmite da residência —“são tão ricos que para eles essa é uma quantidade insignificante”— e explica os negócios nebulosos que rodeiam todo o processo: “O que eles pagam depende em parte dos contatos que os advogados tenham com as embaixadas. Quando o que o país europeu exige é investir em um negócio, muitos montam empresas falsas e, por exemplo, a mesma secretária aparece empregada em 20 locais ao mesmo tempo”.

“No caso dos russos é também uma questão de prestígio social”, conta um gestor de grandes fortunas

O Parlamento Europeu aprovou em meados de janeiro por grande maioria uma resolução não vinculante na qual indica que “se espera que todos os Estados membros atuem de maneira responsável para preservar os valores e lucros comuns da União, e que tais valores e lucros são inestimáveis e não podem ter colados uma etiqueta com o preço”. A Comissão Europeia explica que compete aos países membros decidir quem obtém a nacionalidade em seu país, mas também alerta sobre o perigo de se debilitar os princípios do projeto europeu. Obter um passaporte maltês, por exemplo, permite a livre circulação pelo resto dos Estados da UE, algo que começou a gerar certa desconfiança entre o resto dos membros.

Uma mostra da preocupação de Bruxelas pelo assunto foi a intensa negociação que a comissária Viviane Reding manteve com o Governo maltês, que nesta semana modificou sua lei e passou a exigir uma residência no país por um prazo mínimo de 12 meses para se obter a nacionalidade. Roberta Metsola, deputada europeia conservadora maltesa, considera a mudança legislativa positiva, porque acha que vender a nacionalidade é “uma contradição em um país como Malta, que não para de se queixar de que não pode acolher os imigrantes que chegam pelo Mediterrâneo”.

Os especialistas estimam que as novas políticas não mudarão de forma drástica o fluxo de pessoas nem a demografia europeia porque, afinal de contas, não são tantos os milionários que podem e querem comprar um passaporte. Mas, como alerta Jelena Dzankic, do Instituto Universitário Europeu de Florença, esta nova tendência pode contribuir para “desvalorizar o conceito de cidadania europeia”.

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