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Lutar contra a pobreza, nos países ricos também

Aumenta o consenso para que os novos objetivos de desenvolvimento sejam exigidos também para as economias mais prósperas A luta contra a desigualdade, a coerência entre políticas e erradicar a corrupção estão na lista dos futuros desafios

Alejandra Agudo
Uma criança em Dhaka (Bangladesh).
Uma criança em Dhaka (Bangladesh).Kibae Park (UNPhoto)

Barack Obama e o papa Francisco estão de acordo em pelo menos uma coisa. A desigualdade é “o maior desafio de nosso tempo”. Disse o presidente dos EUA citando o líder religioso. Não se referia à divergência nas condições de vida entre os países do norte e o sul do mundo; falava da crescente brecha econômica e social entre os próprios norte-americanos. Uma realidade que não é diferente entre os cidadãos europeus, onde a pobreza disparou, principalmente ali onde a política da austeridade foi aplicada com rigor, como na Espanha, Grécia ou Reino Unido.

Enquanto o mundo unia esforços para reduzir a proporção de pessoas em situação de pobreza absoluta à metade (aqueles que vivem com menos de 1,25 dólares ao dia, em sua maioria nos países menos desenvolvidos do planeta), o vírus da necessidade se estendia com outras características e particularidades onde se pensava que estava superado. E não é o único. Faltam dois anos para que termine o prazo estabelecido para conseguir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) definidos em 2000, sendo que nenhum foi cumprido plenamente, embora conseguiram importantes conquistas. O desafio agora é renovar e reformular aqueles objetivos, estabelecendo outras metas para um mundo muito diferente, com a lição aprendida de que a luta contra a fome, a preservação do meio ambiente, a educação ou a saúde universais não são só batalhas dos países pobres onde os doadores são meros fornecedores de recursos.

Não importa de onde vêm as vozes ao outro lado do telefone, uma ONG da África, um especialista em América Latina ou uma organização multilateral em Nova York; a mensagem é unânime: a agenda do desenvolvimento depois de 2015 tem que ser universal. “Que não deixe ninguém para atrás e que seus objetivos se apliquem a todos os países e não só aos que estão em via de desenvolvimento”, assinala Amina J. Mohammed, assessora do secretário geral da ONU sobre planejamento do desenvolvimento. Os ODM puseram na agenda política internacional problemas que até então eram a lista de desejos que fazíamos no Natal. “Mas os países desenvolvidos não consideravam a agenda como sua. Os que estavam emergindo também não”, reconhece José Antonio Alonso, professor de Economia Aplicada na Universidade Complutense.

A questão não é menor. Elaborar uma agenda global e particular para a cada região do mundo requer, segundo alguns especialistas, reformular o conceito vertebrador dos ODM, o de pobreza, para que contemple também aqueles que sofrem nas economias avançadas e de renda média.

A definição da pobreza baseada na renda inferior a 1,25 dólares diários ficou obsoleta

Ainda assim, há quem veja a oportunidade para introduzir novas metas como a luta contra a desigualdade ou a chamada "coerência de políticas", que consiste basicamente em que a política comercial não anule os efeitos da ajuda ao desenvolvimento ou que as políticas de crescimento não ignorem os efeitos sobre o meio ambiente. Todos estes novos objetivos que incidiriam de maneira muito particular nos países avançados. Propostas que também têm seus detratores. Os países das Nações Unidas têm que avaliar além disso como incorporar os compromissos esboçados no Fórum Rio+20 sobre desenvolvimento sustentável econômico, social e ambiental. Tudo isso acompanhado de pedidos de alguns grupos da sociedade civil para que a nova agenda seja de cumprimento obrigatório, o que significaria estabelecer multas se não conseguem os objetivos determinados. Sobre todos estes pontos há milhares de vozes –governos, empresas privadas, ONGs, cidadãos– que debatem em uma conversa global impulsionada pela ONU de onde deve sair em até dois anos o roteiro para definir que mundo queremos, uma lista (concisa) de objetivos para todos, os mecanismos para medir e controlar seu cumprimento, bem como os meios e os prazos para aplicar estes pontos. “Mais do mesmo não vai ser suficiente”, adverte  Mohammed.

“Considerar que a pobreza é viver com menos de 1,25 dólares ao dia é absurdo, porque localiza o problema só em países em desenvolvimento, mas não na Europa, Rússia ou Estados Unidos, onde ela também existe. Não pode ser que a ONU ignore esta realidade. Há que fazer uma definição relativa da pobreza”, adverte Roberto Bissio, diretor do Instituto Terceiro Mundo, organização com sede no Uruguai. O conceito, coincidem os especialistas na matéria, ficou obsoleto. A proposta maioritária é estabelecer metas nacionais de redução da pobreza em relação ao contexto econômico do país em questão. Tudo isso tentando, ao mesmo tempo, que um bilhão de pessoas no mundo que ainda vivem em pobreza extrema, que não têm nem um dólar diário para cobrir suas necessidades básicas, possam sair dessa situação.

O relatório redigido pela equipe de 27 especialistas mundiais convocados pelo secretário geral da ONU para elaborar uma proposta preliminar de objetivos faz esta mesma análise. O grupo, entre os que estão o primeiro-ministro britânico, David Cameron, a presidenta da agência cubana para o meio ambiente, Gisela Alonso , ou Rania da Jordânia, colocam "erradicar a pobreza" como primeiro objetivo dos 12. Não só levando “a zero o número de pessoas que vivem com menos de 1,25 dólares ao dia”, mas também a meta de “reduzir em x% a proporção de pessoas que vivem debaixo do limite nacional de pobreza de 2015, correspondente a seu país”.

Da maneira com que está escrito, os governos das economias avançadas teriam que articular medidas para a redução da pobreza interna e dar explicações à comunidade internacional em caso de não conseguir. Por exemplo, o Governo espanhol teria que dizer por que um 6,4% da população vivia em situação de pobreza grave em 2013, uma taxa que duplicava a de 2007, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).

Com respeito à redução da desigualdade, o grande desafio de nosso tempo que preocupa Obama, o debate se apresenta árduo. José Antonio Alonso indica que enquanto há um verdadeiro acordo sobre combater as desigualdades horizontais (entre coletivos), não existe igual coincidência em incluir como objetivo expresso a luta contra a desigualdade vertical (entre pessoas). “Há setores conservadores que consideram que a desigualdade é fruto do esforço da cada um”, assinala.

Indicadores da degradação ambiental pioraram

A proposta que tem maior consenso fala sobre definir metas específicas para melhorar a situação sócio-econômica dos setores mais pobres das sociedades. “Não que os ricos o sejam menos, mas igualar por baixo, levantar o patamar. Por exemplo, melhorando a qualidade de vida de 40% dos grupos mais pobres da população”, detalha Madgy Martínez-Solimán, diretor de políticas de desenvolvimento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Universalizar e atualizar a agenda à nova realidade do século XXI não só toca o coração dos ODM na luta contra a pobreza. O resto dos objetivos também terão que sofrer uma transformação. Basta um exemplo. Em 2000, as Nações Unidas acordaram o ensino primário universal. Tudo indica que a partir de 2015 se trabalhará para “proporcionar educação de qualidade e aprendizagem permanente”. Esse é o Objetivo 3 “ilustrativo” que propõe o grupo de alto nível sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015. Neste sentido, Roberto Bissio, diretor do Instituto Terceiro Mundo, critica que os critérios da alfabetização não são insuficientes para medir o avanço educativo. Em sua opinião, se consideramos estas estatísticas, meio mundo não teria lições de casa. “O que conta são os números de PISA sobre o esforço educativo. O objetivo tem que ser uma educação decente com um nível adequado”, diz.

Se há um objetivo que vai sofrer uma transformação profunda é a sustentabilidade. “Este é o ponto onde o mundo mais mudou desde o ano 2000”, aponta Alonso. “Agora somos bem mais conscientes do deterioro ambiental. Mas não sabemos como o tratar. Acho que haverá algum acordo, mas ainda não está claro qual", acrescenta. Uma solução atual para o objetivo dedicado a este capítulo –”garantir um meio ambiente sustentável”– o painel dos 27 amplia e desmembra o conceito. “O desenvolvimento sustentável é o que resolve as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer as suas”, resume Mohammed. Assim, não se trataria somente de “gerenciar os recursos naturais de maneira sustentável”, segundo versa um dos objetivos do grupo de alto nível da ONU pós-2015, mas também de que qualquer lucro seja sustentável no tempo desde o ponto de vista econômico, social e ambiental. O documento preliminar dos especialistas chamados pelo secretário geral Ban Ki-Moon inclui “garantir energias sustentáveis”, “criar empregos e meios de subsistência sustentáveis” e inclusive “garantir sociedades estáveis e pacíficas”.

“Estas são metas para os ricos, que consomem 80% dos recursos. Têm que mudar seus padrões de consumo para ter um desenvolvimento sustentável”, adverte Bissio. “Há países que tiveram um mau desenvolvimento, por exemplo Alemanha, que consome mais carvão e tem mais pobreza”, assegura. Alonso acha que terá que chegar a “um ponto intermediário porque nem os países desenvolvidos nem os que estão em desenvolvimento estão onde deveriam”.

O mundo é, sem dúvida, muito diferente daquele que os pais dos ODM tentavam melhorar. “Surgiram novos desafios e alguns dos já existentes têm se exacerbado desde o ano 2000”, lembra Amina J. Mohammed. Não só as desigualdades aumentaram. “A degradação ambiental incrementou. As pessoas em todo mundo pedem governos mais responsáveis e mais direitos em todos os níveis. Os desafios da migração cresceram e os jovens em muitos países enfrentam um panorama desolador em matéria de emprego decente e oportunidades”, enumera a assessora do secretário geral da ONU sobre planejamento do desenvolvimento.

Os países emergentes participarão na definição dos novos objetivos de desenvolvimento

Para solucionar todos estes problemas é preciso mais que novos objetivos. Exige compromisso para que o acordado não se converta em uma declaração de intenções. Na opinião de Bissio, "alguns dos objetivos da agenda deveriam ser obrigatórios. Mas há uma enorme resistência dos países que teriam que ceder. Eles [os ricos] dizem que os objetivos devem ser apenas aspirações”. Pablo Martínez Osés, coordenador da plataforma espanhola 2015ymás coincide com a análise. “A agenda 2015 tem que penalizar se alguma parte do acordo não se cumpre”, assegura. “Aos países ricos, aos doadores”, enfatiza. Na sua opinião, quem não quer um verdadeiro compromisso com este acordo internacional são os que apelam dizendo que as multas seriam uma interferência na soberania nacional. “Não compreendo que aqueles que se comprometem a algo resistam a que haja mecanismos de controle e penalização por não-cumprimento”, assinala.

José Antonio Alonso está convencido de que “ninguém vai aceitar uma agenda obrigatória”. Nem sequer que seja uma questão em discussão no seio das Nações Unidas porque o organismo, por sua natureza, não pode impor multas. “O que sim está em debate é que se construa de maneira participativa e que se estabeleçam mecanismos mais claros de prestação de contas das sociedades”, explica.

Martínez Osés, no entanto, tem algumas ideias em mente para poder estabelecer as multas. “Por exemplo, não poder participar nos turnos rotatórios do Conselho de Segurança se não se cumprem seus objetivos”. E vai além. “Também teria que ter multas para as empresas que não cumpram esses novos objetivos do milênio”. Mas o setor privado, que participa nas conversas para definir essa agenda pós 2015, vai supor uma grande resistência neste ponto, indica.

Também brotam discrepâncias sobre a petição nos países menos desenvolvidos, sobre coerência de políticas. Isto é, que as regras (nacionais e internacionais) não sejam contrárias à concretização dos objetivos fixados. Embora na superfície haja consenso em que deve existir essa coerência, no fundo e mais ainda na prática, o acordo é complicado.

Bissio é taxativo: “A agenda pós-2015 tem que incluir uma mudança nas regras de jogo, nas políticas internacionais para que os países possam cumprir os objetivos”. E põe um exemplo. “Índia diz que quer reduzir a pobreza a zero. Mais da metade do problema está ali e a maioria são mulheres ou população rural. Por isso lançou dois programas para fazer estoques de alimentos e repartir outros entre os necessitados. Iniciativas que a Organização Mundial do Comércio, a UE e os EUA disseram que não podem ser feitas. Isto é um desatino, dizem que é ilegal ajudar os pobres porque contraria os tratados do comércio internacional”.

O especialista tem gravado na memória e conta com indignação outros exemplos: “Na África do Sul, onde há uma importante desigualdade social, o Governo faz um plano para promover a classe empresarial com ajudas ou subsídios para pessoas de origem africana que montem um negócio. Então as empresas transnacionais dizem que é uma violação dos tratados de comércio, que é uma medida discriminatória”.

A agenda 2015 deve penalizar os países ricos que não cumpram os objetivos”, diz um especialista

Neste sentido, Martínez Osés sugere três políticas cuja mudança, em busca de maior coerência, deveria entrar na nova agenda. As de comércio, para que estejam “mais dirigidas a reduzir a pobreza e não à acumulação de riqueza”. “Além disso, que preserve o trabalho decente e determine mínimos de direitos trabalhistas”, acrescenta. Quanto às políticas macroeconômicas –”há mais resistência em alterar as regras”, adverte Martínez Osés e sustenta que os países ricos deveriam estar comprometidos a destinar uma parte de seu orçamento ao desenvolvimento, interno e externo. “Este é um dos pontos que se considera que interfere na soberania nacional porque condiciona os orçamentos nacionais”, explica. Um terceiro ponto é relativo à luta contra a evasão fiscal. “Disto não tinha nada nos ODM, mas há muito dinheiro que se move sem passar pelas finanças públicas”, alerta.

Os especialistas e os Governos não são os únicos que têm voz nesta espécie de debate global sobre os objetivos que substituirão os atuais depois de 2015. Os cidadãos também foram consultados no inquérito MyWorld (Meu mundo) sobre suas preferências e petições. Mais de dois milhões de pessoas já responderam, segundo dados da ONU. “A opinião das pessoas é diferente do que se debate entre governos e especialistas”, diz Martínez-Solimán. “A proteção do meio ambiente ou a subagenda da governabilidade está entre os primeiros requisitos”, especifica. “Pedem governos que respondam, que sejam honestos; instituições e políticos honrados”. Estas petições cidadãs terão uma resposta? Martínez-Solimán acha que sim. “Não dá pra fazer uma agenda para 2015 que deixe de fora aspectos tão importantes para as pessoas. Um bom governo deve se colocar no debate global”, considera.

O documento do encontro tem um objetivo neste sentido, que contém cinco metas genéricas entre as que se encontram garantir a liberdade de expressão, o direito à informação e acesso a dados governamentais, bem como reduzir o suborno e a corrupção. Não obstante, a formulação vaga poderia dificultar a medição e controle destes desafios.

Faltam ainda dois anos de conversas entre governos, cidadãos, empresas, organizações... Os debates de hoje ainda têm muito caminho pela frente até que acabem em um pronta final de objetivos. E desta vez, ao contrário do que ocorreu com os Objetivos do Milênio, que nasceram no seio da burocracia das Nações Unidas, muitas vozes têm que entrar em acordo. “Veremos que potências emergentes como Brasil, Índia ou China terão um papel decisivo no acordo. Já não querem ser dirigidas pelos países ricos”, assinala Danny Srikandarajah, secretário geral da Aliança Mundial para a Participação Cidadã, Civicus, uma rede de organizações a nível local, nacional e internacional, com sede em África do Sul.

Lysa John, responsável pela divulgação da secretaria do encontro de especialistas da ONU para a Agenda pós-2015, acredita que “o aparecimento de países de renda média como uma força nas negociações globais fará com que o acordo entre posições e pontos de vista diferentes seja mais complexo que o esquema tradicional de doadores e receptores de ajuda, onde os ODM estão estruturados”. “Globalmente, podemos estar de acordo com uma visão comum do mundo que queremos, mas é preciso uma liderança nacional (e regional) dos governos”, acrescenta. Em definitiva, esse futuro ideal compartilhado não será possível sem uma aposta política e social decidida. E não sem sacrifícios de todos para o benefício de todos. A pergunta que se fazem muitos dos que participam neste debate é: Estamos dispostos e preparados?

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