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Guilherme Boulos: “O Minha Casa Minha Vida enxuga gelo”

Líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto diz que o programa privilegia somente construtoras e defende as ocupações, que chegarão às operadoras de telefonia

Guilherme Boulos durante uma manifestação.
Guilherme Boulos durante uma manifestação.Marcelo Justo (Folhapress)

As manifestações de junho de 2013 foram o gatilho. As ocupações de áreas urbanas para construção de moradias populares dispararam o barril de pólvora da periferia, que encontrou na mobilização popular forças para se impor frente à ineficiência do maior programa já realizado pelo Governo federal pela habitação, o Minha Casa Minha Vida (MCMV), lançado pelo governo Lula em 2009. A ampliação do centro, empurrada pela especulação imobiliária, foi o estopim do levante. Para citar dois exemplos, os moradores do Jardim Ângela e Campo Limpo, zona sul de São Paulo, acamparam porque já não conseguem pagar o aluguel e se negaram a ir morar mais longe ainda.

Mobilizados através do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, acusam o que chamam de “privatização da política urbana”, que fomentou o crescimento das empreiteiras e construtoras. Entrevistamos Guilherme Boulos, 31 anos, um dos coordenadores nacionais do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que explica como a conjuntura econômica do Brasil nos últimos anos catalisou a onda de ocupações – desde junho, foram oito áreas ocupadas somente em São Paulo, e o papel da Copa do Mundo nesse processo.

Boulos recebeu a reportagem de EL PAÍS na ocupação Dona Deda, no Campo Limpo, onde cerca de 400 famílias mantém seus barracos em um terreno baldio na Avenida Professor Oscar Campiglia. Em um dos barracos, com sofá, televisão e energia elétrica obtida por meio de gatos (ligações clandestinas) puxados dos postes da rua, Boulos fala sobre a história recente do MTST. Segundo conta, seu encantamento pela mobilização popular se deu ainda na faculdade, quando era aluno de filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Depois de passar por vários movimentos, se decidiu pelo MTST em 2001.

O hoje professor e pai de duas filhas é um dos coordenadores nacionais do movimento que abraçou, mas garante que sua condição “oriunda de outra classe social” não lhe afeta nas suas relações com demais líderes, até porque, afirma, “existem muitos mais” como ele. Com dados na ponta da língua e uma eloquência que deixa pouca margem para contestar, o velado protagonista é respeitado pelos participantes, que durante esta entrevista, trouxeram espontaneamente copos de água gelada para amenizar o calor desértico provocado pelo teto de lona do barraco.

Pergunta: Por que o Minha Casa Minha Vida, desde o ponto de vista do MTST, não deu certo?

Resposta: O MCMV tem seus méritos. Foi a primeira vez que se deu um subsídio maciço e se deixou de tratar a moradia popular na lógica do financiamento . Atendeu a uma reivindicação histórica dos movimentos, mas no grosso, o MCMV foi feito para o capital imobiliário, para resgatar parte do capital perdido pelas construtoras na bolha mundial de 2008, não para atender o déficit de moradias brasileiro. No primeiro MCMV, o Lula prometeu e fez 1 milhão de moradias. Só que o número de inscritos foi de 18 milhões. O MCMV está enxugando gelo. É um programa que fortalece a lógica imobiliária, porque as empreiteiras continuam especulando.

O MCMV foi feito para o capital imobiliário, para resgatar parte do capital perdido pelas construtoras na bolha mundial de 2008, não para atender o déficit de moradias brasileiro

P. Especulando?

R. Sim, vou dar um exemplo. Suponhamos que eu sou uma construtora e tenho a verba do MCMV para construir 10 prédios e o programa me dá 76 mil reais por unidade. Se eu construir nas terras que eu tenho em bairros como Butantã ou em Itapecerica da Serra (na Grande São Paulo), me pagam a mesma quantia. Então eu vou usar as minhas piores terras, mais desvalorizadas, onde tem menos infraestrutura, com o pior material e o menor apartamento possível. Com o mesmo dinheiro dado às empreiteiras, nós estamos construindo 1084 apartamentos em Taboão da Serra, com três quartos. Enquanto as construtoras fazem unidades de 39m2, nós fazemos de 63m2 para (o que o governo chama de) faixa um (pessoas que ganham de zero a três salários mínimos), com a mesma verba. E além disso este condomínio terá um posto de saúde, uma creche, uma escola municipal e arena de teatro.

P. Mas ainda assim existem denúncias de pessoas que vendem o apartamento que conseguiram do MCMV.

Não lutamos somente pela moradia, temos uma perspectiva de reforma urbana, de um outro conceito de cidade

R. Tem um exemplo disso em Teresina, no Piauí (Nordeste brasileiro). Construíram uma série de torres na periferia da cidade, sem acesso a transporte ou aos serviços básicos, como creches e postos de saúde. Aí reclamam que o sujeito vende. Você constrói um apartamento furreca, caixa de fósforo, precário, no meio do nada: é claro que ele vai vender. Mas se você constrói uma moradia digna, com infraestrutura, num lugar onde o cara possa viver dignamente, duvido que alguém venda. E essa é uma das lutas, e talvez por isso, o movimento se diferencie, porque não lutamos somente pela moradia, temos uma perspectiva de reforma urbana, de um outro conceito de cidade. Depois da casa tem a luta pelos serviços públicos, por melhores condições de vida, de forma geral, para os trabalhadores urbanos.

P. Atualmente 11,4% da população da cidade de São Paulo vive em favelas, segundo o IBGE, o que significa que existe quase 1,3 milhão de pessoas que vivem em moradias de péssimas condições. A melhora econômica dos últimos anos não se viu refletida na realidade das periferias? Por que continuar ocupando?

R. A primeira razão é que hoje, para a maior parte das famílias de menor renda, não há outra opção de conseguir sua casa, se não for ocupando. As pessoas que se cadastram no MCMV ficam anos esperando e não conseguem. E comprar uma casa no mercado é uma realidade distante para milhões. Uma parte trabalhadora consegue, outra não. Principalmente agora, pelo aumento dos juros. Viver pagando um aluguel que aumenta sem limites é insuportável. O bairro Campo Limpo, por exemplo, teve um aumento de 130% no valor do aluguel nos últimos cinco anos, num movimento de expulsão das pessoas que antes conseguiam morar ali com um salário mínimo. E agora elas têm que ir para Taboão da Serra ou Itapecerica (grande São Paulo), que na prática significa uma hora e meia a mais para ir ao trabalho, posto de saúde pior, escola com menos vaga ainda, ou seja, piores condições. Ocupar acaba sendo a única alternativa. E é uma situação historicamente enraizada, hoje as periferias existem porque foram áreas ocupadas inicialmente e isso aconteceu na América Latina inteira. O desenvolvimento urbano expressou desde o princípio uma segregação e boa parte dos movimentos de resistência se organizam pelo território do excedente social.

P. A ampliação do centro é vista como algo positivo, da valorização de bairros da cidade e da chegada do desenvolvimento econômico para algumas regiões...

R. Esse progresso é o que expulsa as pessoas, piora a qualidade de vida delas e afasta ainda mais a periferia. Quem causou isso foi o próprio desenvolvimento econômico, nos moldes como ele se deu. Considerando o contexto, existe uma dinâmica de crescimento econômico Lulista. Com o barateamento do crédito no Brasil, tivemos uma explosão de empreendimentos e em 2010 tivemos a maior valorização imobiliária do mundo. O crescimento do movimento nos últimos cinco anos tem a ver com a dinâmica da economia brasileira. E isso aconteceu porque o crescimento se deu alçado no capital imobiliário, com a ajuda dos Programas de Aceleração do Crescimento (de investimento em infraestrutura) e do MCMV. O capital imobiliário é a principal força política no país. As construtoras financiaram 55% das campanhas dos partidos em 2010, são elas quem hoje definem a política urbana das cidades. O governo já não tem terras, são as construtoras que determinam o quê cada bairro vai virar. E isso potencializa um conflito social muito grande e a Copa é parte disso.

P. De que maneira a Copa do Mundo influencia a situação da falta de moradias?

R. Os megaeventos não trazem desenvolvimento, é uma ilusão. A ONU tem um estudo sobre isso e concluiu que houve especulação imobiliária violenta no período que antecedeu e durante os megaeventos, como Copas e Olimpíadas, em Seul e em Barcelona houve um aumento de mais de 100% na valorização dos imóveis. Você tem um jogo de investimentos na cidade relacionado a isso, um jogo de obras que tem como resultado a expulsão, a segregação. Na África do Sul, até hoje na Cidade do Cabo, há 10.000 famílias que vivem a 30 quilômetros do centro na cidade de latas (Blikkiesdorp), em contêineres. Foram despejadas na Copa de 2010 e estão lá até hoje. Neste sentido, a Copa e Olimpíada no Brasil são dois fatores que aceleraram uma dinâmica que já era profundamente perversa, a do capital imobiliário, que envolve o despejo de famílias, o desperdício abusivo de dinheiro público e os investimentos despropositados.

P. Além de ocupar, existem outros mecanismos para diminuir o problema do déficit de moradias?

R. Antes de entrar nos mecanismos, gostaria de explicar o que é o déficit e o conceito de sem-teto. O IBGE diz que um cidadão que comprometa mais de 30% da sua renda com o pagamento do aluguel faz parte do déficit habitacional, além daqueles que não têm casa ou vivem em situação de precariedade. A Fundação João Pinheiro divulgou em dezembro que o déficit aumentou na faixa um (renda mensal de até R$ 1.600). O aluguel aumentou e as pessoas comprometem ainda mais seu salário com isso. O Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo fez um estudo em 2010 falando sobre os domicílios vagos em comparação com o déficit de moradias. Se esses imóveis fossem aproveitados, somente teríamos que construir 900.000. E existe uma visão errada sobre o sem-teto. Ele não é o cara que mora na rua. O Brasil tem 6,3 milhões de famílias sem teto, mas somente parte delas moram na rua, as que chegaram a uma situação de máximo desespero e desamparo. Sem teto são as famílias que moram de aluguel sem poder pagar, famílias que dividem o mesmo quarto, que moram em cortiço, casa de parentes ou habitações precárias de modo geral. 95% dos participantes do MTST, os que ocupam, vieram de alguma dessas situações.

P. Quais as saídas?

R. Existem mecanismos para diminuir isso e está tudo no Estatuto das Cidades, não precisaríamos nem criar novas leis, somente fazer valer as que estão aí. Existe a desapropriação compulsória, que é pegar um terreno social que esteja vazio, mas que o proprietário está usando para especular. Se ele em quatro ou cinco anos não constrói, o estado pode tomar o terreno dele e pagar com títulos da dívida pública. Dação em pagamento, para os que devem IPTU. Tem o direito de preempção, que o Governo tem preferência na hora de decidir o futuro de uma propriedade. Tem direito de prioridade, que também está no Estatuto.

P. E por que não se utilizam estes mecanismos?

R. Porque você iria combater quem paga a campanha eleitoral. É difícil acreditar que isso vá acontecer. Quando em junho do ano passado conversamos com a Dilma, nossa proposta era um maior controle dos valores do aluguel. Não adianta falar que é caro, é preciso conter. De 1917 até a ditadura, existia a lei do inquilinato, que congelava o valor dos aluguéis. As mobilizações e greves de 17 eram pelos valores dos alugueis. Conseguiram congelar por oito anos. Quem acabou com isso foram os militares, que permitiram que subissem mais do que a inflação. De 2008 a 2013, a média da inflação foi de 39,67%. Os aluguéis em São Paulo subiram 95% no mesmo período. Rio de Janeiro foi ainda pior, 132% de aumento, segundo o índice da Fipezap.

P. Quais são os objetivos do MTST a longo prazo então? Continuar ocupando?

R. Em primeiro lugar, nós fomos pegos pelo processo. O movimento começou a ser procurado em todos os lugares e foram criando listas de espera enormes para ocupar. Até mesmo as ocupações que eram espontâneas, como a do Campo Limpo, vieram até nós depois que a polícia os despejou. As mobilizações de junho fizeram disparar as ocupações e os participantes do movimento, um sinal de que ninguém aguenta mais a especulação nem o aumento do valor do aluguel, entre outras questões. Nós vamos sim continuar ocupando, mas com um propósito que nos diferencia dos demais movimentos. Desdobramos a luta pelos serviços públicos e infraestrutura nas periferias. E o resultado de promover ocupações nessas comunidades é nossa integração com os bairros ao redor, que contam conosco para se manifestar diante do Pronto Socorro ou vêm pedir ajuda para resolver um problema com a Prefeitura. Desenvolvemos uma luta para melhorar as condições de modo geral. Para fevereiro, temos previsto ocupar sedes de operadoras de telefonia celular, porque na periferia elas não funcionam. Para a Copa vai ter problema, teremos ainda mais mobilização e a nível nacional.

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