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No coração do Panamá ninguém mexe

As pretensões da construtora Sacyr de receber mais dinheiro pela ampliação do Canal se chocam com o orgulho de um país que transformou a obra em seu símbolo

JUAN DIEGO QUESADA (ENVIADO ESPECIAL)
Obras de ampliação do Canal do Panamá, realizadas pelo consórcio GUPC.
Obras de ampliação do Canal do Panamá, realizadas pelo consórcio GUPC.Cristóbal del Valle Morell

Há um Panamá de luzes cintilantes e sabor caribenho. Carros que cruzam a faixa costeira com música a todo volume. “Aonde tu vai? Te consigo mulheres, festas. O que quiser, meu chapa”, oferece um jovem na orla. Mas isso coexiste, no mesmo território, com essa outra nação que é o Canal do Panamá, o orgulho pátrio administrado por engenheiros graduados nas melhores universidades do mundo. De mentalidade rígida e espartana. Negociadores duros.

A Sacyr, empresa espanhola que lidera o consórcio GUPC (Grupo Unidos Pelo Canal), encarregado da ampliação da via interoceânica, bateu de frente com o segundo Panamá.

As obras de melhoria da hidrovia que liga o mar do Caribe ao oceano Pacífico no ponto mais estreito do istmo centro-americano estão quase paradas. Com 65% do trabalho já realizado, o consórcio exige 1,6 bilhão de dólares (3,8 bilhões de reais) por causa de custos adicionais para poder concluir a construção, o que está previsto para meados de 2015. O consórcio atribui os problemas à dificuldade do terreno e a erros de cálculo no caderno de encargos. As autoridades panamenhas consideram que esses gastos não se justificam, e se negam a colocar mais dinheiro.

Os técnicos estrangeiros que deveriam estar trabalhando passam as manhãs correndo por trilhas e as tardes passeando pela cidade enquanto não se chega a uma solução. Os guindastes e os sacos de cimento parecem abandonados num dos lados dos canais. “Eles estão acostumados a tratar com Governos latino-americanos esbanjadores e corruptos que não têm tanto respeito pelo público”, afirma um funcionário do Executivo que esteve sentado à mesa de negociação. Um membro do conglomerado de empresas (que inclui, além da espanhola Sacyr, a italiana Impregilo, a belga Jan de Nul e a panamenha Cusa) replica: “São mestres transportando navios de um lado para o outro, mas sobre a construção de uma grande infraestrutura não têm nem ideia. As reclamações são justas, e uma postura de tão pouco diálogo é incomum nesse nível”, opina.

A sede da Autoridade do Canal do Panamá (ACP) fica sobre o alto de uma colina. Jorge Quijano é sua máxima autoridade. Seus empregados propagam a lenda de que ele conhece cada parafuso do Canal, para o qual trabalha desde os anos setenta. Pertenceu a um grupo de trabalhadores conhecido como A Matraca, que fazia oposição à direção norte-americana na década de 1990, época em que foi formalizada a transferência da hidrovia para os panamenhos. “Estávamos sendo patrióticos, e com a ampliação também”, afirma Quijano. O Panamá se separou da Colômbia em 1903, mas cedeu parte do seu território aos Estados Unidos para a construção da via interoceânica. Quijano recorda como lhe parecia humilhante ter de cruzar um território estrangeiro para chegar ao seu escritório.

O Canal entregou ao país um lucro de 1,6 bilhão de dólares durante os 85 anos de gestão norte-americana. Nos 14 anos desde a devolução, já são 8,6 bilhões de dólares (28,2 bilhões de reais, ao câmbio atual) que entraram nos cofres do Estado. “Tivemos ótimos lucros e ótimos resultados, mas isso não quer dizer que vamos pactuar fora do contrato. Essa grana não é de ninguém, é dos panamenhos!”, prossegue Quijano. Uma posição tão nacionalista não poderia estar dificultando o entendimento? “Não me turvo, não creia nisso.” Antes de dar por terminada a entrevista, ele recorda uma cena que considera significativa: “Insisti com eles que não iria me mover do que estipulava o contrato, e Paolo Moder [diretor da Impregilo] me disse para mudar a lei. Eu lhe disse: o senhor está me insultando”.

Por enquanto não há recuo. Na semana passada, os envolvidos estiveram próximos de um acordo graças à mediação da seguradora Zurich, que propunha transformar em crédito os 400 milhões de dólares da fiança. Cada uma das partes deveria contribuir com 100 milhões adicionais. Fluxo de caixa para acabar a obra. Mas o trato acabou não prosperando, e as partes se deram prazo até 1º. de fevereiro.

Os panamenhos sabem o que é beijar a lona, e sentem que ceder às solicitações das construtoras estrangeiras seria voltar a fazer isso. Roberto Manos de Piedra Durán era o herói nacional em 1980. Em junho daquele ano, havia vencido uma luta memorável contra Sugar Ray Leonard, até então o campeão invicto dos meio-médios. Em novembro, ele ofereceu a revanche ao norte-americano e, inexplicavelmente, jogou a toalha no sétimo assalto. “Isso temos guardado aqui e não esquecemos”, diz um operário panamenho subcontratado, tocando a têmpora. Está de braços cruzados até que a obra recomece.

No hotel Intercontinental entram e saem durante o dia homens de negócios que parecem ter muita pressa. Mas já caiu a noite, e no bar do lobby toca-se jazz ao vivo. José Manuel Loureda, presidente do consórcio, parece um pouco cansado depois de intermináveis negociações que o mantêm ativo quase as 24 horas do dia. O empreiteiro enumera um rosário de problemas com o concreto, o basalto e a drenagem de uma das represas. “À medida que fomos enfrentando a natureza fomos encontrando essas dificuldades. Apresentamos nossas reclamações, o normal no setor, mas o Canal leva todos os processos de disputa a uma terceira instância. Não é compreensível essa forma de administrar”, lamenta. O Canal rejeitou as 90 reclamações apresentadas pelo consórcio, que no entanto as considera devidamente justificadas. Diz procurar uma solução para o problema de liquidez que mantém as obras paralisadas desde novembro. O presidente da Sacyr, Manuel Manrique, como muitos outros consultados, considera que o peso simbólico do Canal e sua importância na economia mundial pesam na hora de desembaraçar o problema.

A paralisação das obras sobressalta o comércio marítimo mundial. Esse foi um tema recorrente nas conversas do presidente panamenho, Ricardo Martinelli, no fórum de Davos. O rompimento entre as partes retardaria a obra até 2018 ou 2020, segundo a comissão negociadora. A ministra espanhola de Fomento, Ana Pastor, se ofereceu para mediar a busca de uma solução. “Não deve haver nenhuma negociação por fora do contrato”, atalha o ex-chanceler panamenho Jorge Eduardo Ritter. “Isto não é um conflito diplomático. Qualquer dessas mediações não contribui em nada”, observa.

Mais de 8.000 espanhóis participaram da construção do Canal do Panamá (1904-1914). Apenas os barbadianos eram mais numerosos. As gerações posteriores se dedicaram a abrir hotéis para turistas e a vender móveis a prazo para os mais pobres, aqueles a quem ninguém oferecia crédito. Algumas quantas famílias ampliaram esse negócio e acabaram se dedicando integralmente aos empréstimos. Em algumas ocasiões, os espanhóis são associados à agiotagem. O jogador de futebol Julio César Dely Valdés foi atacante do Málaga e do Oviedo e até agora era técnico da seleção do Panamá. Ele viaja assiduamente à Espanha, e por isso vive o conflito do Canal sob dois pontos de vista. “Politizou-se muito o problema. No final, deve ser resolvido. São nações que precisam se entender”, acrescenta ele, salientando que o assunto vai além de uma disputa entre particulares.

Na Taberna 21, em pleno centro comercial da cidade, ouve-se música ao vivo para todos os gostos (rock, funk, instrumental). O orgulhoso proprietário do local, um asturiano rechonchudo e afável chamado Hilario Suárez, bebe vinho enquanto recorda como lhe ocorreu no ano passado apresentar a candidatura do Canal do Panamá ao Prêmio Príncipe de Astúrias na categoria cooperação internacional: “Ele une todo o mundo. Judeus e árabes. Espanhóis e panamenhos. Se isso não for concórdia, que venha Deus e veja”. Definitivamente, eram outros tempos.

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