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A memória violada

O monumento berlinense às vítimas do Holocausto sofre uma deterioração que pode transformá-lo em um campo de ruínas

Memorial do Holocausto em Berlim.
Memorial do Holocausto em Berlim.Thomas Peter (Reuters)

A Alemanha tem um problema com a sua história. Quando o país conseguiu recuperar a normalidade perdida em decorrência da derrota militar e do famoso Muro de Berlim, as autoridades puseram em andamento um raro e digno processo de autoflagelação para recordar com monumentos, na zona mais emblemática de Berlim, o sofrimento das vítimas da ditadura nazista, uma inédita iniciativa destinada a imortalizar sua própria vergonha perante a história.

O mais famoso de todos é o grandioso monumento memorial às vítimas judias do Holocausto, que foi inaugurado em 2005 e que é composto por 2.711 blocos de concreto de cor cinza, medindo entre 0,50 centímetro e 4,5 metros de altura. Suas bases estão enterradas em uma aérea do tamanho de dois campos de futebol, e o conjunto oferece ao visitante uma sensação sufocante, que recorda um cemitério judaico.

O cemitério simbólico – ou seria um labirinto? – foi desenhado pelo arquiteto norte-americano Peter Eisenmann, com o objetivo de prestar uma tardia e solene homenagem aos seis milhões de judeus que foram assassinados durante o Terceiro Reich na Europa. Nos últimos oito anos, este se tornou um dos lugares mais visitados da capital alemã.

O Memorial do Holocausto é o monumento mais importante oferecido pela capital e pelo país, um lugar quase sagrado, que pretende mostrar ao mundo que a Alemanha, 23 anos depois da queda do Muro, é capaz de confrontar seu terrível passado e pedir perdão pelo crime cometido.

Mas, agora, o grande monumento está enfrentando um inimigo desumano, que pode transformar o memorial em um campo de ruínas. Por causa de um erro de cálculo, o material utilizado na fabricação dos blocos permitiu a infiltração da chuva. O frio intenso do inverno transformou a água em gelo, que funcionou como uma poderosa dinamite interna.

O resultado é devastador. Mais de dois terços dos blocos do memorial estão marcados por rachaduras através das quais flui um filete branco, descrito pela imprensa como lágrimas simbólicas. “Todo o monumento parece estar sofrendo”, escreveu o jornal Süddeustche Zeitung, enquanto o Bild formulou uma pergunta inquietante. “É possível salvar o memorial do Holocausto?”.

Embora as primeiras rachaduras tenham aparecido no final de 2005, a imprensa alemã ainda não encontra uma explicação para o silêncio e a imobilidade das autoridades, que, aparentemente, ainda não conseguiram se pôr de acordo para buscar uma solução e impedir que as rachaduras terminem transformando o Memorial em uma ruína arqueológica.

Nos últimos oito anos, mais de 10 milhões de pessoas visitaram o Memorial, que se transformou em uma visita obrigatória para as centenas de milhares de turistas estrangeiros e alemães que visitam Berlim. Mas o lugar mais sagrado e solene do país também se transforma a cada ano, com a chegada da primavera, em uma profana praça de diversão, onde os adultos desfrutam do sol largados sobre os blocos, bebem cerveja e comem salsichas, enquanto as crianças brincam de correr e de se esconder entre as centenas de pilares, indiferentes às rachaduras que ameaçam acabar com a fria beleza dos blocos de concreto.

A falta de respeito praticada pelos habitantes da capital (e também pelos turistas) é vista também no monumento que evoca o genocídio de 500.000 ciganos assassinados pelos nazistas, que os classificavam como “racialmente inferiores”. O solene monumento, uma fonte redonda de doze metros de diâmetro, qualificada pela chanceler Angela Merkel como um “espelho de eterno sofrimento”, virou uma versão berlinense da famosa Fontana di Trevi, em Roma.

O monumento, localizado a poucos metros do famoso Reichstag, sede do Parlamento Federal, foi inaugurado em outubro de 2012, e graças à sua localização é visitado diariamente por dezenas de turistas, que aproveitam a ausência de vigilantes para lançar moedas à fonte – uma ação que, segundo a tradição, deve trazer sorte. Todos os dias, uma firma que se ocupa da manutenção do monumento recolhe as moedas e coloca uma flor nova sobre uma pequena lápide localizada no centro.

“Por sorte, ninguém até agora quis tomar um banho na fonte”, admitiu um guarda. “A fonte é pouco profunda, mas as moedas atraem muitos vagabundos”.

A memória violada também afeta um monumento singelo, mas digno, que recorda um atentado dos nazistas à cultura alemã e universal: a queima de livros. No meio da Babelplatz, o cenário berlinense da queima de livros, as autoridades criaram uma pequena vitrine de vidro através da qual se pode observar um conjunto de prateleiras vazias, a chamada “Biblioteca Submersa”.

Mas, aparentemente, ninguém mais se preocupa em limpar o vidro, um descuido que também afeta vários segmentos do famoso Muro expostos na Postdamer Platz. Os pedaços de muro estão cobertos por chicletes, latas de cerveja vazias se acumulam durante dias, e o esqueleto de ferro dos segmentos está recoberto de pequenos cadeados que casais anônimos colocam para se comprometerem ao amor eterno.

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