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Mark Bray: “Não há nem de longe grupos Antifa suficientes para levar a cabo o que estamos vendo”

O autor de ‘Antifa – O Manual Antifascista’ afirma que é difícil saber qual é o envolvimento nos protestos dos Estados Unidos deste movimento horizontal e minoritário, que Trump anunciou que classificará como organização terrorista

Mark Bray, especialista no movimento antifascista, em Valência, em 2019.
Mark Bray, especialista no movimento antifascista, em Valência, em 2019.MÒNICA TORRES
Silvia Hernando
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Santiago Abascal levou dois dias para adaptar seu vocabulário ao de Donald Trump. “O Governo de socialistas e comunistas, e a hipócrita esquerda festiva, incentivam as turbas de antifas e de ilegais que atacam a polícia”, escreveu nesta terça-feira o líder do partido Vox no Twitter, em uma mensagem acompanhada de um vídeo supostamente gravado em Saragoça, no qual se vê um grupo de pessoas pulando e caminhando em uma rodovia enquanto entoa cânticos contra os abusos policiais. Em 31 de maio, o presidente dos Estados Unidos anunciou pelo mesmo canal, seu meio habitual de comunicação, que “os Estados Unidos da América designarão o ANTIFA como organização terrorista” (uma advertência à qual Abascal respondeu afirmando que "na Espanha, o PSOE os assenta no Conselho de Ministros e no CNI”).

De costa a costa, os EUA estão há nove dias imersos no que pode ser considerada a maior revolta social em seu último meio século de história: uma onda de protestos pela morte de um cidadão negro nas mãos da polícia ―o segurança George Floyd, assassinado em Minnesota―, que continua a aumentar de intensidade, apesar da imposição do toque de recolher e da ameaça de Trump de mobilizar o Exército. Segundo o presidente e magnata norte-americano, os culpados da situação ―sempre é preciso ir em busca deles― estariam medianamente definidos.

“Muitos dos que participam das manifestações não pertencem a nenhum movimento nem partido”

Pelo que se deduz de suas palavras, para Donald Trump, o Antifa seria algo como um grupo unificado, praticamente uma associação política com militantes, sede e estatutos. Várias pessoas que estariam por trás não apenas dos protestos que estão incendiando os Estados Unidos, mas também das réplicas que brotam em outros países, da Espanha ao Reino Unido. No entanto, a sempre complexa realidade está longe de ter uma explicação tão simples. Em 2017, o historiador Mark Bray escreveu Antifa - O Manual Antifascista (publicado no Brasil pela Editora Autonomia Literária), um livro que se tornou referência no tema, pois compila e analisa a história do movimento antifascista desde o início do século XX até os dias atuais, e inclui os depoimentos de mais de 60 antifas contemporâneos de 17 países, dos Estados Unidos, a terra natal, a vários Estados europeus.

“Embora a história do antifascismo remonte a 100 anos, com Hitler, Mussolini ... a palavra Antifa surgiu após a Segunda Guerra Mundial na Europa e, depois, nos Estados Unidos, e passou a designar uma tendência dentro do amplo movimento antifascista em que diferentes pessoas se unem na luta comum contra a extrema direita por meio de ação direta, evitando recorrer à polícia, ao Estado ou às forças de segurança”, explica Bray em uma conversa por telefone de sua casa em Nova York, onde está confinado para proteger sua família do coronavírus.

Como enfatiza o autor, "Antifa não é um grupo unitário, como Trump afirmou", mas sim um "tipo de política" que se estrutura por meio de diferentes círculos "autônomos e descentralizados", com um número indefinido não só nos Estados Unidos e na Europa, mas também em outras partes do mundo. "É complicado especificar até que ponto eles estão envolvidos nos protestos, porque não divulgam suas atividades e é difícil saber quantos membros os compõem", ressalta.

Manifestantes antifascistas em Portland (Estados Unidos).
Manifestantes antifascistas em Portland (Estados Unidos). SCOTT OLSON (GETTY/AFP)

A conclusão mais lógica que se pode extrair é que, na maioria, as pessoas que protestam pelas ruas de dezenas de cidades nos Estados Unidos são indivíduos sem filiação política unívoca e que simplesmente "estão enfurecidos” com o racismo sistêmico nos Estados Unidos. "De um modo geral, tem sido rotulado como um protesto do Black Lives Matter (vidas negras importam), que é uma organização específica, mas também um termo aplicado mais amplamente para descrever o movimento relativamente recente contra o assassinato de negros pela polícia”, acrescenta Bray. “Mas muitos dos que participam das manifestações não pertencem a nenhum movimento ou partido.”

O fato de o envolvimento do Antifa nas revoltas dos Estados Unidos não poder ser quantificado não significa, de todo modo, que não esteja presente nas manifestações. "Acho razoável pensar que alguns deles estão participando de diferentes formas de protestos e atividades de resistência, mas simplesmente não há nem longe membros suficientes ou grupos Antifa nos Estados Unidos para promover o que estamos vendo", diz Bray, que nunca fez parte de nenhum desses grupos, mas foi um dos organizadores do Occupy Wall Street, em Nova York, em 2011, uma etapa de ativismo em que fez muitos dos contatos necessários para realizar as entrevistas que apresenta em seu livro.

Organizados por meio de reuniões presenciais e online, alguns desses grupúsculos compartilham informações e táticas, mas nunca se amparam sob o guarda-chuva de uma estrutura hierárquica. Sim, existe um site que reúne uma dúzia de grupos, The Torch Network, mas a conta de Twitter divulgada nos últimos dias, ANTIFA America, na realidade é obra de supremacistas brancos que querem fazer barulho. “A meu ver, os grupos Antifa que existem em uma cidade como Nova York estão, sim, em contato entre si. Mas o número de membros é geralmente pequeno, porque querem evitar a infiltração da polícia. Ao ingressar em um desses grupos, você o faz com um forte compromisso, de modo que não é algo planejado para ser uma política de massas”, diz Bray. "E há grupos que, para evitar a infiltração, não aceitam novos membros."

Nas páginas de Antifa – O Manual Antifascista, o autor delimita três períodos diferentes da luta antifascista: o primeiro, até 1945, o segundo, até 2003 e, o terceiro, na atualidade. Bray considera que o antifascismo tende a emergir como uma reação ao fascismo, algo que constatou quando pesquisava para escrever o livro. “Se você pergunta quando um grupo começou, te respondem: ‘Foi há três anos, porque foi quando o grupo neonazista local se organizou.’ E se você pergunta quando foi dissolvido, eles dizem: “'Uns dois anos depois. Quando o líder do grupo neonazista local se mudou para outro Estado, nós mudamos nossos objetivos para lutar contra a construção de um oleoduto'. Tem sido assim nos últimos anos, quando houve uma espécie de explosão de interesse pelo Antifa e a organização de uma reação à campanha eleitoral e à vitória de Donald Trump”, acrescenta o autor, que alerta para os perigos da equidistância, uma tendência a igualar os polos opostos que, em inglês, é chamada de “teoria da ferradura”, porque nela os dois extremos se juntam.

“Você não pode comparar dois tipos de políticas com base nas táticas, mas nas razões pelas quais adotam essas táticas. Não é o mesmo ser misógino que ser feminista, antirracista e racista, imperialista e anti-imperialista ”

“O que a extrema esquerda e a extrema direita têm em comum é que nenhuma das duas é liberal, e nenhuma das duas joga com as regras da, entre aspas, estabilidade discursiva ou das políticas que se situam no centro do espectro”, diz. "Por exemplo, historicamente, os fascistas interrompem os discursos de seus oponentes, e os antifascistas fazem o mesmo. Por isso, há pessoas que dizem: ‘Eles têm algo em comum’. Mas, para mim, você não pode comparar dois tipos de políticas baseando-se exclusivamente nas táticas, mas nas razões pelas quais elas adotam essas táticas. Não é o mesmo ser misógino que ser feminista, antirracista e racista, imperialista e anti-imperialista ”.

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