_
_
_
_
_

‘American Dirt’, a última grande polêmica editorial nos EUA que ultraja a comunidade latina

Hispânicos se rebelam contra um romance, escrito por uma branca, que aborda o narcotráfico e a imigração, cheio de “estereótipos” e “erros”

Pablo Ferri
Oprah Winfrey (à esquerda), com o livro ‘American Dirt’. Ao seu lado, a autora, Jeanine Cummins
Oprah Winfrey (à esquerda), com o livro ‘American Dirt’. Ao seu lado, a autora, Jeanine Cummins
Mais informações
Marcel Proust, em 1891-1892.
Proust sai do armário com oito contos inéditos
Una imagen de las calles de Nápoles, ciudad en la que se ambientan las novelas de Ferrante.
O mistério de Elena Ferrante continua fascinando a Itália
Os melhores livros do século XXI

Nas últimas duas semanas, a comunidade latina nos Estados Unidos se uniu contra o novo fenômeno da indústria editorial. Pensada para arrasar nas listas de vendas, American Dirt (“sujeira americana”, Flatiron Books, 2020) tem chances de se tornar o grande fiasco do ano. Ou da década. Escritores e jornalistas de origem latino-americana que vivem nos Estados Unidos se lançaram contra a obra, descrevendo-a como um compêndio de “estereótipos” e “erros”. Além disso, acusam a autora, Jeanine Cummins, e a editora de apropriação cultural e total falta de sensibilidade.

American Dirt conta a história de Lydia e Luca, mãe e filho, ambos mexicanos, perseguidos pelo narcotráfico e obrigados a fugir para os Estados Unidos para salvar a pele. Cummins situa a ação em Acapulco. Um domingo, o cartel local ataca a família de Lydia e Luca, assassinando 16 pessoas, entre elas ao marido e pai dos protagonistas. Mãe e filho sobrevivem por milagre e escapam. Querem chegar a Denver e decidem que La Bestia é sua melhor opção. La Bestia, o trem cargueiro que migrantes do México e sobretudo da América Central usam há anos para viajar à fronteira com os EUA. A violência e a migração ―o presente do romance― se misturam à paquera prévia entre Lydia e o chefe do cartel de Acapulco, um sujeito sanguinário, mas também culto e sensível.

A estranha mistura de tramas, a caracterização de Lydia como mãe-coragem, a romantização do chefe do narcotráfico, a simplificação do mundo do crime e a redução da dor da migração a “uma aventura como nos filmes”, como escreve a própria autora, irritaram muita gente no México e nos Estados Unidos. Numa crítica que viralizou nos últimos dias, a escritora Myriam Gurba diz que “American Dirt é um livro Frankenstein, um espetáculo torpe e distorcido, e enquanto alguns críticos brancos comparam [a autora] a Steinbeck, acredito que uma comparação mais apropriada sejam com [o rapper branco] Vanilla Ice”.

Tudo começou em meados de janeiro. A Flatiron Books havia passado meses divulgando o romance, pelo qual pagara uma quantia milionária à autora. Escritores consagrados, como Stephen King e Don Winslow, tinham escrito comentários elogiando-a ―Winslow chegou a dizer que American Dirt é uma versão moderna de As Vinhas da Ira―. Grandes veículos, como The New York Times e The Washington Post, publicaram resenhas positivas. A editora vendeu os direitos para a adaptação cinematográfica. E sua consagração: a influente apresentadora de televisão Oprah Winfrey a recomendou para seu clube de leitura.

Mas pouco a pouco a irritação da comunidade latina começou a ser ouvida. Primeiro, por uma questão de apropriação cultural, pelo direito (ou não) de uma mulher branca, criada em Maryland, moradora de Nova York, contar uma história totalmente alheia a ela. E segundo, sobretudo, pela qualidade do romance, que muitos qualificam de péssimo.

Na semana passada, Winfrey publicou no Twitter um vídeo em que divulgava o romance, ao que a premiada escritora mexicana Valeria Luiselli respondeu: “Com todo respeito, esta parece a pior escolha possível de um livro para 2020”. Na imprensa escrita, o mal-estar foi se impondo aos elogios. A repórter Esmeralda Bermúdez, do Los Angeles Times, escreveu um texto que reflete parte do incômodo. Bermúdez contava que sua família fugiu de El Salvador na década de 1980, durante a guerra e a brutal caçada dos esquadrões da morte: “Achei que poderia reconhecer parte da minha história no livro. Aí comecei a lê-lo (...). Fui percebendo que não havia sido escrito para gente como eu, e sim para os outros, para encantá-los com uma viagem selvagem ao outro lado da fronteira, para fazê-los sentirem a confusão da situação dos migrantes (...). Tudo isso a partir dos piores estereótipos, obsessões e imprecisões sobre os latinos”. Em outro artigo do LA Times, seu autor, Daniel Hernández, dá voz ao escritor de origem salvadorenha Roberto Lovato, que critica a indústria editorial: “Estão tratando este assunto [o drama da migração] como se fosse um filme da Marvel”.

Com o escândalo em etapa de crescimento, a autora deu poucas explicações. “Durante cinco anos relutei em escrever esta história, porque não sou migrante, não sou mexicana e não sabia se tinha o direito de escrevê-la”, disse recentemente numa entrevista, “mas meu pai morreu inesperadamente. Isso foi em 2016, a uma semana das eleições presidenciais (...) E, bom, percebi que não me importava o que ninguém dissesse, porque meu pai estaria muito orgulhoso deste livro”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_