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Encontro global no coração da Amazônia tenta adiar o fim do mundo

Lideranças indígenas encontram jovens ativistas e cientistas para trocar conhecimento sobre como salvar os povos da floresta e todo o planeta da crise climática

Liderança indígena Anita Juruna com o ativista britânico Elijah MckEnzie-Johnson.
Liderança indígena Anita Juruna com o ativista britânico Elijah MckEnzie-Johnson.Lilo Clareto (ISA)
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Na mitologia dos indígenas Yanomami, as borboletas saíram da borda do mundo para continuar a vida. Quis o destino que, no momento em que cinco voadeiras (como são chamados os barcos motorizados dos ribeirinhos amazônicos) atracaram na Reserva Extrativista do Iriri, na Terra do Meio (Amazônia), uma dezena de borboletas amarelas fizesse uma festa no céu. Foi ali que um heterogêneo grupo de 50 pessoas —de diferentes etnias, idiomas e nacionalidades— reuniu-se no coração da maior floresta tropical do mundo para trocar conhecimentos sobre como protegê-la e permitir a continuidade da vida no planeta.

Jurunas, xikrins, xipayas, kaiapós e yanomamis, entre eles o xamã Davi Kopenawa Yanomami, reuniram-se durante dois dias com jovens ativistas brasileiros e europeus —como as impulsoras do movimento Fridays For Future na Bélgica, Anuna De Wever e Adélaïde Charlier, ou a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot—, e cientistas como a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, entre outros. “Nunca esperava que um encontro assim fosse acontecer”. Foi Davi Kapanawa quem resumiu o sentimento geral.

Em uma sala de aula simples que faz as vezes de local de reunião e centro de confraternização da comunidade de beiradeiros, o encontro começou, depois de 10 horas de viagem pelo rio Iriri, afluente do Xingu, com um ritual Yanomami e a força de uma afirmação em seu idioma: awei (sim), palavra gritada que emana força e celebração. Para dar o tom da jornada, a jornalista e escritora Eliane Brum (colunista deste jornal), uma das organizadoras do evento ao lado do Instituto Socioambiental (ISA) e outras organizações, lembrou o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak: “Ele diz que, quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo para respirar. É o que estamos fazendo aqui”.

“Mas o que é esse tal de clima? Para que serve?”, perguntou, de modo pragmático, Manoel Assis, ou Seu Assis, presidente da Reserva Extrativista do Iriri, anfitrião do encontro Amazônia Centro do Mundo (que, entre os dias 16 e 19, continuará em Altamira). Ele contou que “tremeu na base” quando soube que ia receber cerca de 50 pessoas de diferentes partes do mundo. Os diferentes cientistas presentes falaram sobre as condições e características do planeta que permitem uma vida “estável na Terra” e explicaram sobre os gases que humanos, indústrias e o bilhão e meio de bois no planeta jogam na atmosfera. Comentaram o aumento da temperatura do planeta e usaram muito a expressão que tanto anda na boca dos jovens que seguem a adolescente sueca Greta Thumberg: mudança climática.

Também falou-se, como não podia deixar de ser, do extermínio dos povos da floresta, que padecem nas mãos de grileiros, madeireiros, fazendeiros e multinacionais. Davi Kopenawa lembrou dos 27 mil yanomamis que vivem em um território entre Roraima e Amazonas. “Cada aldeia tem dois pajés, que cuidam do universo, da onda do mundo. Mas nós já lutamos muito durante 20 anos. Agora, é a vez dos jovens, é a vez da juventude defender nossa Terra Mãe. Vocês vão construir outro tempo. Nós, lideranças do Brasil, vamos dar a flecha para vocês guerrearem com o homem grande”, disse, enquanto entregava uma caneta aos jovens ativistas presentes. “Estou dando a flecha para vocês acertarem o coração do homem branco.

A gente vai lutar com papel e documento. Eu nunca matei um homem branco, mas eles mataram meu povo”, acrescentou. O encontro na Amazônia acontece às vésperas da COP 25 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), que após desistência do Chile vai acontecer em Madri.

Raimunda Gomes, líder ribeirinha, também contou que “viu a morte” de perto com a instalação da hidroelétrica de Belo Monte na região da Volta Grande do Xingu. “Eu não entendo de clima, de mudança climática, mas entendo de calor e frio”, contou ela, que viu a natureza ao seu redor mudar. Ameaçada de morte, Raimunda disse não intimidar-se em seu ativismo. “A bala mata um de cada vez, o problema é a caneta, que mata vários de uma vez só. A pessoa que assinou a autorização para Belo Monte atingiu 40 mil pessoas de uma só vez”.

Socorro Costa e Silva, liderança do quilombo de Barcarena, também na região do Xingu, interpelou diretamente os visitantes estrangeiros: “Esses jovens que vêm de fora, aprendam uma coisa comigo: a gente quer que a temperatura do planeta diminua, sim. Mas, para isso, precisam cuidar de nós, povos da floresta, porque é a gente que cuida das árvores, dos rios e animais”.

“Vocês fizeram muito mais do que nós e temos vocês como exemplo”, reconheceu Elijah Mackenzie-Johnson, de 15 anos, replicador do movimento Youth For the Climate (Juventude pelo Clima) no Reino Unido. “A gente teme que coisas horríveis aconteçam com a gente, mas sabemos que essas coisas horríveis já estão acontecendo com vocês. E pessoas do mundo inteiro estão dispostas a lutar com vocês para proteger a Amazônia”, acrescentou Anuna de Wever.

A fala simples, direta e energética de Socorro foi replicada com palavras mais rebuscadas pelo antropólogo Eduardo Nunes, que explicou que, “com o conhecimento muito sofisticado para fomentar a biodiversidade em seus jardins”, os povos indígenas de milhares de anos atrás formaram a Amazônia de hoje. “Isso prova que, sem o povo da floresta, não há floresta”, sentenciou o cientista.

Durante a noite, as conversas continuavam em pequenos ou grandes grupos, que comiam sob a sombra de uma árvore ou trocavam ideias e vivências ao redor do fogo. Foi precisamente ao redor de uma fogueira que os jovens reuniram-se para ouvir os conselhos de Davi Kopenawa. O xamã reforçou seu conselho de que os jovens se juntem para “fazer uma barreira e obrigar as autoridades a respeitarem a Amazônia”. A primeira parte do encontro Amazônia Centro do Mundo terminou com cantoria, dança, abraços e lágrimas de emoção à beira do rio Iriri, em uma cerimônia típica do povo xipaya, que lembra: é preciso alegria e coragem para adiar o fim do mundo. Awei!

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