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Furacão María matou 50 vezes mais do que o Governo de Porto Rico divulgou

Relatório da Universidade George Washington revela que 2.975 pessoas morreram em decorrência da maior tragédia sofrida pelo país em décadas. E não 64

Pablo de Llano Neira
Casas destruídas pelo furacão em San Juan em 2017
Casas destruídas pelo furacão em San Juan em 2017AP
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Andar pelas ruas dos subúrbios de Porto Rico ou pelas estradas das aldeias serranas e costeiras depois do furacão María, que atingiu a ilha em 20 de setembro de 2017, era uma visão constante do abandono mais elementar e da impotência da população. Em meio ao caos nas comunicações e o apagão do sistema elétrico, cidadãos, políticos, militares, jornalistas tateavam no escuro uma realidade que se revelava muito mais grave do que os dados que iam sendo divulgados pelo Governo da ilha, com corpos se acumulando nos necrotérios dos hospitais. Foi preciso passar quase um ano para se confirmar, em números, a dimensão humana da maior tragédia sofrida por esse país em décadas. Acaba de ser publicado o estudo feito pela Universidade George Washington a pedido Governo porto-riquenho e o resultado é devastador: pelo menos 2.995 pessoas morreram em Porto Rico em consequência desse furacão entre a data do impacto e fevereiro de 2018. O cálculo mede as mortes atribuíveis ao furacão em comparação com a média de mortes registradas durante o mesmo período em anos anteriores.

Até hoje, o número oficial de mortes causadas pelo furacão María era de 64. Um dado que o Governo de Ricardo Rosselló manteve por meses sem que ninguém lhe desse crédito. Agora, a luz dos fatos reais desnuda sua estratégia de avestruz: diante da dimensão da catástrofe, enfiaram a cabeça no buraco pelo maior tempo possível para diminuir o impacto político. Mas ultimamente vêm abrindo a porta para o reconhecimento do que aconteceu. Em agosto, um documento interno admitia que as mortes causadas pelo María poderiam passar 1.400. De 64 para 1.400 e, finalmente, para 2.995. Ou seja: 46 vezes mais que aquele número insustentável. O estudo destaca, ainda, que os males causados pela catástrofe atingiram sobretudo os mais fracos. O risco de morte foi 45% maior para os que viviam em comunidades pobres e os maiores de 65 anos foram expostos a uma situação de permanente vulnerabilidade.

A população diminuiu 8% devido à emigração para os EUA, passando de 3.327.000 habitantes em setembro de 2017 para 3.048.000 em meados de fevereiro de 2018.

O governador Rosselló disse após conhecer o estudo, numa entrevista ao El Nuevo Día, principal jornal local: “Não sou perfeito. Cometo erros (...). Naquele momento tínhamos um protocolo. Só percebemos um pouco depois que era totalmente insuficiente, e isto tudo resulta em que a responsabilidade de atribuir a causa da morte era dos médicos, mas que infelizmente não havia um processo formal para prepará-los diante de uma devastação. Naquele momento era o número que se tinha, e hoje temos indícios que apontam que o número naquele momento com toda certeza era maior. Isto denota a magnitude da catástrofe”, assumiu.

Rosselló, acuado por estimativas independentes que foram saindo anteriormente e que apontavam a irrealidade da versão oficial, assumiu a necessidade de encarregar esse estudo à Universidade George Washington e arcar com o resultado. Outras investigações haviam oferecido estimativas de 1.130 mortos (Universidade Estadual da Pensilvânia) e 4.600 mortos (Universidade Harvard), mas estas instituições não tiveram acesso aos dados do Registro Demográfico, aos quais o Governo de Porto Rico só permitiu o acesso em 1º. de junho. A opacidade estatística motivou críticas como as do Centro de Jornalismo Investigativo de Porto Rico, que foi crucial na pressão para que os fatos viessem a público. “O Governo mente e sabe disso”, escreveu em junho Damaris Suárez, jornalista do centro e presidenta da Associação da Imprensa de Porto Rico. “O manejo irregular dos dados sobre os mortos depois da passagem do furacão María persegue a administração de Rosselló. A magnitude do problema aumentou aos olhos da opinião pública internacional como uma bola de neve, como consequência da falta de transparência deliberada que, no caso dos mortos, teve início poucos dias depois do fenômeno atmosférico”.

Após conhecer o dado desse estudo que esclarece definitivamente a questão, o jornal El Nuevo Día salientou que o ocorrido se deu “em meio a um evidente despreparo das autoridades porto-riquenhas e norte-americanas”.

Nessa longa demora até que a verdade fosse revelada influíram tanto a falta de vontade política de organizar uma contagem veraz e rápida das mortes atribuídas ao furacão como as deficiências de preparação da administração para enfrentar a catástrofe, e em concreto a classificação das vítimas mortais em curto e médio prazo. O estudo diz: “A estimativa oficial do Governo, de 64 mortes por causa do furacão, é baixa, principalmente porque as formas utilizadas para a atribuição das causas só permitiram a classificação de mortes atribuíveis diretamente à tormenta; por exemplo, as causadas por desabamento estrutural, escombros dispersos, inundações e afogamentos. Durante nosso estudo mais amplo, concluiu-se que muitos médicos não estavam orientados sobre a certificação do protocolo adequado”. Essa imprevisão é chocante para um país que se encontra em plena zona vermelha de furacões. Mas mais desconcertante ainda é esta outra avaliação dos investigadores, que entrevistaram funcionários do governo e de organizações civis: os planos de emergência, dizem, “não estavam concebidos para furacões de uma categoria maior que a força 1”.

O furacão María foi o mais forte em Porto Rico em cem anos. Atingiu o território porto-riquenho com uma categoria 4 e ventos de 250 quilômetros por hora, no limite dos números da categoria 5, o máximo na escala dos furacões. Deixou a paisagem ilha arrasada, bairros inundados com a água chegando a três metros de altura, numerosas estradas bloqueadas, pontes caídas, a rede elétrica destruída e centenas de milhares de casas danificadas ou no chão. Nos hospitais e nas casas de pessoas doentes ocorreram alguns dos momentos mais dramáticos devido à falta de eletricidade para manter ligados os equipamentos médicos vitais.

O furacão atingiu Porto Rico no pior momento, com sua administração mergulhada em uma dívida pública de mais de 70 bilhões de dólares (280 bilhões de reais) e sua economia sob a intervenção, como continua até hoje, de um Conselho de Supervisão Fiscal designado pelo Congresso dos EUA, país do qual Porto Rico é um Estado Livre Associado. A ilha exigiu de Washington um pacote de ajuda para a reconstrução que totaliza 139 bilhões de dólares.

A confirmação do brutal número de mortos faz parecer ainda mais infeliz a atitude do presidente dos EUA, Donald Trump, quando visitou a ilha poucos dias após o furacão. Diante da imprensa, Trump disse que o número oficial de mortos em Porto Rico naquela altura não era nada comparado aos 1.800 que o furacão Katrina deixou em 2005. “Você deve estar orgulhoso”, disse ele ao governador Rosselló, em quem essas palavras vão ecoar por muito tempo.

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