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Inventor: um ofício de crianças ricas

Vários estudos documentam o imenso talento que se perde devido à desigualdade social e de gênero

Javier Salas
Meninos de famílias abastadas têm acesso muito mais fácil à inovação.
Meninos de famílias abastadas têm acesso muito mais fácil à inovação.US ETV
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Se você pensa que existem carreiras elitistas, como a diplomacia e a magistratura, talvez deva considerar os inovadores. Estudos recentes revelam uma realidade bem diferente do estereótipo do gênio inventor que vive sem um tostão, encerrado numa garagem com seu talento e o suor de sua testa. A profissão de inventor é muito pouco igualitária, com injustos filtros que impedem o acesso de mulheres, minorias e, essencialmente, pessoas com famílias de poucos recursos. O principal talento necessário para ser um inovador de sucesso é ter pais com dinheiro.

“Transformar-se em inventor depende de duas coisas nos EUA: se destacar em matemática e ciências e ter uma família rica”, concluem os autores

Um menino criado numa das famílias que compõem o 1% mais rico da população tem 10 vezes mais chances de se transformar em inventor do que outro educado por pais com renda abaixo da média, sem importar as notas que tenham, segundo o estudo "Quem se torna um inventor nos EUA", publicado recentemente. As crianças que mais se destacam na aula de matemática, por exemplo, têm muito mais probabilidade de se tornarem inventores – mas somente se vierem de famílias de alta renda. É pouco provável que as crianças com bom desempenho em matemática e de famílias de baixa renda ou minorias consigam seguir essa carreira.

“Transformar-se em inventor depende de duas coisas nos Estados Unidos: se destacar em matemática e ciências e ter uma família rica”, concluem os autores do trabalho. Assim, uma criança de família pobre que se sobressai em matemática tem as mesmas chances de triunfar como inovador que as de uma criança rica com notas medíocres nessa matéria.

“[A desigualdade] pode se dever a fatores intangíveis, como a falta de acesso à rede de amigos e contatos familiares”, explica Palomeras

O estudo analisa, com uma quantidade excepcional de dados, o perfil sociodemográfico de 1,2 milhão de inventores nos EUA, considerando a renda familiar, as notas escolares e as patentes registradas. Tudo começa muito antes da universidade. “Os estudantes de famílias de baixa e alta rendas nas universidades com maiores quantidades de inventores (por exemplo, o MIT) continuam patenteando a um ritmo relativamente similar, apoiando a noção de que os fatores que afetam as crianças antes de ingressar no mercado de trabalho são determinantes para quem se transforma em inventor”, afirmam os pesquisadores do estudo, liderado por Raj Chetty, da Universidade Stanford.

Poderia se pensar que a desigualdade dos EUA é pouco representativa além de suas fronteiras. Mas outro estudo recente, "A origem social dos inventores", sobre os inventores na Finlândia, obteve resultados similares. Na Finlândia, um país com educação igualitária e gratuita, com pouca discriminação a priori no mercado de trabalho, os pesquisadores encontraram uma má gestão do talento, “que afeta sobretudo os indivíduos de alto coeficiente de inteligência”. Os autores da pesquisa focaram nesse fator, o da capacidade cognitiva, em vez das notas escolares, mas encontraram um padrão idêntico ao dos EUA: as possibilidades de se transformar em inventor na idade adulta aumentam à medida que cresce a renda da família, disparando quando chega ao topo das famílias mais ricas. As capacidades de meninas e meninos são um fator secundário também na Finlândia, um dos países mais igualitários do mundo. A educação dos pais afeta decisivamente as possibilidades dos filhos, um fator que em muitos países tem um vínculo direto com sua renda. “A relação entre a renda dos pais e a probabilidade de se tornar um inventor se baseia na educação dos pais, tanto diretamente como através de seu impacto na educação do filho”, explicam os autores, liderados por Philippe Aghion, do College de France, em Paris.

Também há uma gigantesca disparidade de gênero: só 4,2% dos inventores europeus são mulheres. E recebem 14% menos que seus colegas homens por patentes de alta qualidade

Como funciona esse mecanismo? “Pode influir de muitas formas intangíveis: se os pais não têm a educação adequada, talvez não saibam que há oportunidades que seus filhos estejam perdendo; ou porque não têm referentes em seu entorno; ou porque não têm acesso à rede de amigos e contatos da família”, explica Neus Palomeras, economista da Universidad Carlos III, em Madri. Há uma década, Palomeras participou do primeiro estudo que tentava estabelecer um perfil dos inventores europeus, "Inventores e processos de invenção na Europa". Por exemplo, só 26% tinham doutorado e 77% diploma universitário.

Mas talvez o que mais chamou a atenção naquele estudo, assim como nos atuais, seja o espaço praticamente residual deixado às mulheres: em sua amostra de 9.000 europeus com patentes importantes, só 2,8% eram inventoras. No estudo de 2016 "É um trabalho de homem: renda e diferença de gênero na pesquisa industrial", que abordou esse problema, apenas 4,2% dos 9.700 inventores de 23 países eram mulheres (8,3% na Espanha; 2,4% na Suécia), que além disso recebiam 14% menos que seus colegas homens com o mesmo nível de produtividade de patentes de alta qualidade. Nos EUA, a equipe de Chetty estima que haja 18% de inventoras na geração nascida em 1980, contra 7% na geração de 1940.

Uma criança de família pobre que se sobressai em matemática tem as mesmas chances de triunfar como inovador que as de uma criança rica com notas medíocres na matéria

Trata-se de um enorme problema de desigualdade de gênero que, como em outros casos, começa na infância. No estudo do Chetty sobre os EUA, as meninas estavam tão longe de ter acesso a essa carreira inovadora quanto os meninos de famílias sem recursos ou de minorias étnicas. “Se as meninas estivessem tão expostas a inventoras quanto os meninos a inventores, a disparidade de gênero na inovação se reduziria à metade”, calcula a equipe do estudo. Essa ideia tem sido implementada em diversas iniciativas, como a de cientistas mulheres que compartilham suas experiências com suas alunas, além da campanha espanhola 11 de Fevereiro, que promove a vocação das estudantes por ocasião do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência.

Por essa razão, os autores falam de “Einsteins perdidos”: são todos esses cérebros que não podem contribuir com seu talento inovador para a sociedade. “Se as mulheres, as minorias e as crianças de famílias de baixa renda inventassem no mesmo ritmo que os homens brancos de famílias de alta renda, a taxa de inovação nos EUA seria quadruplicada”, calcula a equipe de Chetty. “Seriam pessoas que poderiam substituir outras menos produtivas em seus cargos ou que poderiam levar ao mercado uma ideia de qualidade que ajudasse a aumentar a inovação”, diz Palomeras.

Na Finlândia, um dos países mais igualitários, as oportunidades também aumentam à medida que a renda familiar cresce

A desigualdade de gênero, pelo menos nos EUA, foi ligeiramente corrigida. Mas a desigualdade de classe nem sempre foi assim. Entre 1880 e 1940, a renda do pai se relacionava positivamente com a chance de o filho se tornar um inventor – mas, ao contrário de agora, a educação da criança era mais decisiva, segundo um estudo publicado em 2017 sobre a idade de ouro dos inventores norte-americanos. Como afirma Chetty no The New York Times, a “criatividade está amplamente distribuída; as oportunidades, não.”

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