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Roubaram a praia do Vidigal

Construção do hotel Sheraton, em 1968, dificultou acesso de moradores e criou segregação do espaço. Prefeitura diz que não há projeto para democratizar entrada de não hóspedes, feita hoje por 141 degraus

Após pressão de moradores, o hotel construiu uma escadaria com 141 degraus para o acesso à praia aos não hóspedes
Após pressão de moradores, o hotel construiu uma escadaria com 141 degraus para o acesso à praia aos não hóspedesHenrique Mindlin Associados
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Cento e quarenta e um degraus. Quem quiser acessar a praia do Vidigal – e não for hóspede do Hotel Sheraton Grand Rio Hotel & Resort – precisa descer exatamente 141 degraus. Essa cobiçada faixa de areia pode ser vista por quem passa na avenida Niemeyer, que liga o bairro do Leblon ao de São Conrado. Mas, para chegar lá, haja degrau. Em sua inauguração, no início dos anos 1970, o hotel, situado aos pés da favela do Vidigal, passou a ocupar o acesso antigo à praia.

O hotel fica em um terreno de intensa declividade com cerca de 30 mil metros quadrados, entre a própria avenida Niemeyer e a praia, na capital fluminense. Da praia até a avenida, são ao todo seis pavimentos, e os acessos ao hotel são feitos no sexto andar por este ficar no mesmo nível da via. Acima da avenida, são mais 18 apartamentos. Ao todo, a espaçosa edificação conta com 596 apartamentos. Estando nela, pode-se chegar à praia de elevador – são quatro principais e dois de serviço – ou escada rolante.

Nos anos 1970, notícias de jornal mostram como o hotel era anunciado aos hóspedes VIP como se tivessem acesso a uma praia particular. O jornal O Globo chegou a noticiar em 1973 que a praia do Vidigal era “exclusiva” do Sheraton. Foram notícias como essa que começaram a revoltar moradores do entorno. Luís Cláudio Lima, 70 anos, residente na favela do Vidigal desde os 10 anos, recorda que os moradores se organizaram. “O acesso para a praia, naquela época, passou a fazer parte do terreno do hotel. Como ali é uma encosta, a praia passou a ser só frequentada por hóspedes. Fizemos um protesto na avenida e outro na própria praia.”

Pressionado, o hotel construiu a longa escadaria como único acesso a quem não é hospede. Embora o Sheraton não controle o acesso de quem quer chegar até a praia, tampouco facilita o passeio dos demais moradores da área. “Trata-se de um acesso tão desconfortável em relação ao que oferece o hotel que mostra claramente uma segregação socioespacial’’, diz o arquiteto Pablo Benetti, para quem a escada está defasada em termos de padrão urbanístico.

Pescadores cuja presença só é notada devido aos armários de madeira onde guardam seu material de pesca e moradores da favela do Vidigal, comunidade com quase 10 mil habitantes segundo o Censo de 2010, localizada na encosta acima do hotel, relataram à Pública que o hotel não dá apoio a quem precisa ir de elevador até a avenida – caso de pessoas com problemas de mobilidade. “Já houve pessoas que ou passaram mal ou mesmo quase se afogaram e tiveram de subir a escadaria. Casos assim dependem da boa vontade do gerente de plantão”, diz o pescador Marco Aurélio Costa.

Moradora do Vidigal, Jéssica Carvalho, de 25 anos, estava na praia do Vidigal, amamentando um bebê de 4 meses no último mês de setembro. A reportagem da Pública perguntou então se ela enfrentaria aqueles 141 degraus de volta para casa. “Você contou o número de degraus?”, indagou. “Vou voltar pela escada, sim; nem passou pela minha cabeça pedir ao hotel.”

A reportagem da Agência Pública tentou algumas vezes contato com o hotel, mas não foi atendida. Sem se identificar, um gerente disse que o critério de acesso é “caso a caso”, explicando que se trata de um prédio privado.

O Sheraton atualmente pertence à rede norte-americana Marriott, que, por sua vez, o adquiriu da rede StarWood em 2014, somando assim mais de 5 mil hotéis no mundo. A estada custa mais de 600 reais no quarto mais em conta. Há unidades para casal, família, de frente para o mar, tudo isso levando a variação de preços. Uma refeição pode sair de 100 reais a 300 reais.

O hotel é mais frequentado por argentinos, chilenos e, em menor escala, brasileiros, de acordo com funcionários. E tem um histórico de hóspedes famosos como o ex-presidente americano George Bush, o cantor norte-americano Tony Bennett e o ídolo britânico da música pop Rod Stewart. Entrevistados pela Pública, alguns hóspedes disseram não ver nenhuma segregação.

Porém, na faixa de areia, nota-se uma clara divisão. Aquelas cadeiras de madeira na praia, tão características de hotéis de luxo, firmam uma espécie de linha divisória entre os hóspedes e moradores do Vidigal que frequentam o pedaço.

O começo

Em 1968, quando instalou ali seu empreendimento, a administração do Sheraton resolveu privatizar a praia do Vidigal, onde já havia uma colônia de pescadores. Armando Almeida Lima, de 75 anos, a quem moradores da favela do Vidigal recorrem quando o assunto é memória do morro, disse que já durante a obra o hotel tentou fechar os caminhos da praia, o que seria ilegal segundo a legislação atual – a Lei 7.661, de 1988, garantiu que as praias são bens públicos de uso comum do povo.

“Nosso único acesso, que era uma escada de barro, passou a fazer parte do terreno do hotel. É claro que o Vidigal foi contra, mas o fundamental para a construção de novos caminhos para a praia foi a pressão de moradores de classe média alta da avenida Niemeyer, que também não se conformaram com a ideia de uma praia exclusiva para o hotel. Então, o hotel construiu uma escada de madeira e, depois de protestos, uma de alvenaria.”

Armando não vai mais à praia que leva o nome da favela onde mora. “Com a minha idade, fica impossível encarar aqueles degraus’’, diz. Mal conservado, o caminho é inóspito, íngreme e com concreto já desgastado. Também morador do Vidigal, o cantor e compositor Sérgio Ricardo, de 80 anos, é outro que nunca mais frequentou a praia. “Não vou pedir para ir à praia no elevador do hotel. Aquilo ali é uma invasão”, diz ele.

Para outra moradora do Vidigal, Bárbara Nascimento, de 28 anos, o hotel criou “um apartheid”. “E não criaram uma rampa para cadeirantes ou idosos, mas uma escada praticamente só para jovens.” A praia é dos moradores, segundo ela. “Essa praia tem tanto a ver com o Vidigal que até Vinicius de Moraes fez um poema chamado ‘Balada da praia do Vidigal’. Parece que ele teve um encontro amoroso por lá.” Para Bárbara, só um acesso decente a todos devolveria o ar democrático à areia. “É muito estranha essa história de acessos diferenciados à praia.”

Em 2016, quando o peemedebista Eduardo Paes ainda era prefeito, sua administração prometeu um caminho mais acessível aos moradores. Nada foi feito. Procurada pela Pública, a atual prefeitura de Marcelo Crivella (PRB) limitou-se a responder: “Não há projeto para o local. A prioridade da Geo-Rio [Fundação Instituto de Geotécnica, órgão da Secretaria Municipal de Obras] são obras nas encostas que ofereçam riscos”.

Nos anos 1990, a prefeitura do Rio, com Cesar Maia (PMDB) à frente da administração municipal, fez o projeto Favela-Bairro, no morro do Vidigal. Como a calçada do hotel era por demais estreita, o poder público local pediu que ela fosse refeita, a fim de ficar mais larga e evitar atropelamentos em uma via bem movimentada. Então secretário municipal de Habitação e hoje presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio Magalhães relembra o caráter elitista do hotel à época numa área contígua à favela do Vidigal. “O hotel não queria pobres passando em frente a ele, e só fez a calçada depois que saiu uma nota em uma coluna famosa do jornal O Globo”, conta o presidente do IAB. “No final, a calçada foi refeita.”

A Agência Pública está divulgando uma série de reportagens sobre praias da costa brasileiras fechadas, controladas ou vigiadas, apesar de uma lei que estabelece claramente que esses trechos de território devem ter sempre acesso ao público. Angra dos Reis, Paraty e a capital do estado do Rio de Janeiro são alvo dessa série. A Agência também publicou em suas redes sociais um pedido para que praias privadas sejam denunciadas para a Pública.

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