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China manda fechar curso que formava mulheres submissas

Entre as disciplinas do curso constavam cozinha, costura, faxina e normas comportamentais

Macarena Vidal Liy
Quatro mulheres durante banquete do Fortune Global Fórum na última quarta-feira em Cantão
Quatro mulheres durante banquete do Fortune Global Fórum na última quarta-feira em CantãoXIAO XIONG (GETTY)
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Não tente fugir da lavagem da louça pedindo comida entregue em casa. “Se você encomenda comida fora em vez de prepará-la diretamente, está descumprindo uma norma estabelecida para as mulheres”. Quando o seu marido lhe pedir alguma coisa, “diga-lhe que sim e que o fará imediatamente”. Para lavar, “é melhor fazê-lo bem agachada”.

Esses eram alguns dos conselhos ensinados nas aulas do curso sobre “Moralidade Feminina” ministrado na Escola de Cultura Tradicional da cidade de Fushun, em Liaoning, nordeste da China, até que as autoridades locais determinaram o seu encerramento nesta semana.

Um vídeo divulgado na Internet mostrando o conteúdo de algumas dessas aulas trazia os professores ensinando às alunas “pérolas” como “o homem é o céu e a mulher é o chão. A mulher se situa em uma posição inferior”. Ou, ainda: “se baterem em você, não retribua o golpe; se a insultarem, não devolva o insulto; aguente e não peça o divórcio”. Entre as disciplinas do curso constavam cozinha, costura, faxina da casa, bem como normas comportamentais e literatura tradicional.

“Se baterem em você, não retribua o golpe; se a insultarem, não devolva o insulto; aguente e não peça o divórcio”, pregava o curso

“Meu marido me colocou nesta escola para eu aprender a subordinação e o comportamento feminino”, diz uma das mulheres no vídeo. Em outras cenas, é possível ver as alunas se levantarem às 4h30 da manhã para começar a fazer as tarefas domésticas.

Depois que o vídeo gerou mais de 5.000 comentários críticos na Internet, o departamento de Educação de Fushun determinou o cancelamento das aulas, sob o argumento de que atentavam contra a moral social e a igualdade de gênero.

Esse tipo de instituição, segundo o jornal nacional Global Times, tem proliferado nos últimos anos em toda a China. A Constituição do país determina a igualdade entre homens e mulheres, e a mão de obra feminina representa 43% do total da força de trabalho naquela que é a segunda maior economia do mundo. Mas a igualdade real ainda é algo muito distante, em um país onde, segundo a tradição, filhos homens que perpetuem a linhagem familiar sempre foram claramente preferidos. No relatório sobre igualdade de gênero do Foro Econômico Mundial deste ano, a China aparece em centésimo lugar, abaixo de países como o Tajiquistão ou o Azerbaijão.

Embora a China conte com mais mulheres multimilionárias do que qualquer outro país, o salário médio das mulheres é 35% inferior ao dos homens. Nenhuma mulher jamais participou do órgão máximo do poder na China, o Comitê Permanente do Partido Comunista (de sete membros), e no segundo escalão do comando, o Birô Político, há apenas uma mulher entre os 25 integrantes.

A socióloga Leta Hong Fincher denuncia no livro Leftover Women (Mulheres que sobram) uma mentalidade, estimulada pelas próprias instituições oficiais chinesas, segundo a qual as mulheres que não se casam até os 27 anos são vistas como defeituosas.

Segundo dados oficiais, cerca de 22% das mulheres chinesas casadas são vítimas de violência doméstica. Embora a China tenha aprovado dois anos atrás a sua primeira lei contra esse tipo de agressão, seu cumprimento é ainda irregular e só protege as mulheres casadas. Um estudo da Asian Foundation apresentado na semana passada em Pequim registra que, em uma amostra de 799 pessoas, 13,3% denunciaram ter sido pessoalmente vítimas de abusos domésticos nos últimos 12 meses; e 56,4% admitiram ter testemunhado maus tratos contra alguma pessoa conhecida. Segundo alguns estudos, 80% das mulheres trabalhadoras sofreram assédio pelo menos uma vez.

Até mesmo lançar uma campanha do tipo #MeToo é algo complicado. Problemas como a violência doméstica sempre foram considerados, tradicionalmente, como uma questão familiar na qual não se deve intrometer; como no Ocidente, muitas mulheres assediadas no trabalho optam por fechar a boca ou mudar de emprego em vez de denunciar, convencidas de que, se falarem, serão, elas mesmas, as maiores prejudicadas.

E, em um país onde as autoridades prezam a estabilidade acima de tudo, qualquer tentativa de mobilizar a sociedade civil é extremamente vigiada. Há dois anos, um grupo de cinco feministas que organizava uma campanha contra o assédio no transporte público ficou detido durante um mês. Outras ativistas que falaram abertamente sobre a violência sexual acabaram sendo vítimas de perseguição permanente.

Mas o silêncio também já começa a ser quebrado. Em outubro, depois de uma série de protestos na Internet, o jornal estatal China Daily teve de retirar do ar um artigo que afirmava que o assédio sexual era um problema inexistente no país. Depois de uma tentativa de uma ativista de cantão de lançar uma campanha contra o assédio no metrô, começaram a aparecer mensagens oficias contra essas abordagens. Cada vez mais mulheres ousam falar ou se declarar feministas. “A campanha contra o assédio sexual na China enfrenta muitos obstáculos e desafios, mas o mais importante e que é fonte de bastante otimismo é que as atividades jamais se renderão”, afirma a ativista Lü Pin, em artigo para a Anistia Internacional.

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