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Primeira pessoa

Sou apóstata e estou ajudando outras pessoas a serem também

Rechaçar a fé católica na Espanha ainda é considerado o maior pecado que um cristão pode cometer Mas para quem decide apostatar é apenas uma questão de coêrencia e liberdade religiosa

Foto cedida por Marta
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Você já escutou o testemunho de pessoas que sofreram com o indizível para apostatar? Eu já me imaginava subindo montanhas, cruzando mares, resistindo a dilúvios, evitando labirintos e andando sobre cristais. Mas sabe de uma coisa? Minha apostasia foi bastante simples e me bastou um pouco de paciência.

Embora o verbo "apostatar" também possa significar o abandono de um partido político ou uma simples mudança de opinião, o mais comum é se referir ao abandono da fé católica, a qual muitas pessoas são amarradas desde seus primeiros dias por meio do batizado.

Que minha experiência tenha sido tão suportável deve-se, em parte, à existência de páginas como apostatar.org, que explicam os passos a serem tomados e apresentam muitos conselhos. Em seguida, explicarei de maneira sucinta como foi o meu caminho.

Primeiro, solicitei minha anulação de batismo na paróquia onde havia sido batizada. Tive sorte porque continuava vivendo na mesma cidade do meu batizado. Mas, se você houver mudado de cidade, pode recorrer ao correio, pelo menos em teoria.

Fiz a solicitação, seguindo um dos conselhos que encontrei nas páginas da internet, dizendo que precisava para me casar, não para apostatar. Eu o fiz porque alguns padres tentam convencer pessoalmente os apóstatas a desistirem. Em meu caso, quis evitar essa conversa.

Segundo, fui a um posto da Polícia Nacional – sem compromisso prévio e sem custos – para fazer uma cópia autenticada do Documento Nacional de Identidade ( o equivalente ao RG brasileiro).

E, terceiro, baixei uma das solicitações de apostasia que podem ser encontradas facilmente na internet (aqui, por exemplo). Tive apenas que juntar os três documentos (a anulação de batismo, a cópia do RG autenticada e a solicitação de apostasia) e os entreguei para a minha diocese (eu o fiz por correio certificado, para que houvesse provas). Passada uma semana, tive apenas que ir à diocese para assinar. E, um mês mais tarde, já tinha em mãos o meu certificado de apóstata.

Como podem ver, foi um esforço aceitável. E me parece importante que seja, porque tenho a impressão de que muita gente deixa de apostatar pensando que são necessários esforços sobre-humanos. Minha recomendação, portanto, é que, se quiser apostatar, não deixe de tentar.

Agora, tenho consciência que a apostasia na Espanha é uma verdadeira loteria. Enquanto alguns países europeus, como Finlândia ou Alemanha, exigem apenas o preenchimento de alguns formulários simples, a apostasia em nosso país depende de ter sorte ou azar com a sua diocese. E, às vezes, dentro de uma mesma diocese, os resultados são variados, como demonstra o caso das 137 pessoas que acabam de apresentar uma apostasia coletiva em La Rioja, das quais falarei mais para frente.

E para que tudo isso?

A apostasia, mais que qualquer outra coisa, é um ato de coerência pessoal. Frequentemente, afirma-se que, com a apostasia, a Igreja Católica deixa de receber financiamento por parte do Estado. Mas isso não é uma certeza porque a Igreja guarda para si os números de apóstatas.

Também existe a falsa crença de que a Igreja recebe dinheiro público em função do número de batizados que celebra e do número de pessoas que, por esse ato, são registradas como católicas. Levando em conta que o número de batizados caiu 31% entre 2008 e 2015 na Espanha, se isso for verdade, a Igreja deveria estar recebendo cada vez menos dinheiro.

Mas isso não está acontecendo necessariamente porque, na verdade, a Igreja Católica recebe financiamento público de muitas fontes. Uma das mais importantes corresponde à atribuição tributária. Ou seja, deve-se ao terço de espanhóis que, todos os anos, marca a caixa correspondente na sua declaração de renda. E esta quantidade tem se mantido quase estável, em torno dos 250 milhões de euros (equivalente a 970 milhões de reais) entre 2008 e 2015.

Mas ainda há muito mais: subsídios de ministérios, comunidades autônomas e prefeituras; isenções e benefícios tributários; shows educativos, sociais e sanitários, e a manutenção feita pelas instituições do patrimônio que a Igreja possui. Ou seja, sua apostasia não influenciará diretamente nos mais de 11 bilhões de euros anuais que, de acordo com um cálculo recente da Europa Laica, a Igreja recebe do Estado.

Esta quantidade de dinheiro, ao depender de tantas fontes, também não está diretamente vinculada com o número de pessoas que se declaram católicas nas pesquisas do censo oficial, que são geralmente usadas para determinar o número de católicos na Espanha.

Nessas pesquisas, descobrimos que já há mais pessoas na Espanha que não professam religião do que católicos praticantes. No entanto, embora não sejam praticantes, até 70% dos espanhóis consideraram-se católicos em fevereiro de 2016. Este artigo do El País resumiu bem: "Misturar números e religião geralmente gera mais interrogações do que as resolve".

E, agora sim, falarei das 137 pessoas que apresentaram uma apostasia coletiva em La Rioja. É uma das maiores apostasias coletivas – se não for a maior – já realizada na Espanha. Como se preparavam para apresentá-la na mesma cidade que eu, auxiliei algumas delas acreditando que minha experiência poderia ser útil. Mas estava errada.

Depois de entregarem a documentação pertinente (ao apresentá-la em pessoa, não precisaram reconhecer a cópia do RG), o Tribunal Eclesiástico de Calahorra e La Calzada responderam em um comunicado afirmando que suas solicitações são insuficientes. E que precisam de "uma declaração oficial" de apostasia. Os aspirantes a apóstatas não têm muito claro a que se referem com "oficial". Enquanto isso, pediram uma reunião com o bispo para esclarecer esses aspectos.

No entanto, além dos requisitos formais, o comunicado faz alusão a critérios morais, afirmando que o rechaço total da fé cristão é o maior pecado que um cristão pode cometer. E também afirma que, por se tratar de uma decisão de extrema gravidade, eles se negam a conduzi-la como se estivessem dando baixa a serviços esportivos municipais.

As diferenças entre meu caso e o dos 137 apóstatas demonstram a falta de um processo padrão para abandonar a Igreja Católica. E a situação é pior em algumas regiões porque há algumas dioceses que, de acordo com os testemunhos dos afetados, negam-se diretamente a tramitar as apostasias.

É possível que alguém conheça o testemunho de pessoas para as quais a apostasia foi um processo complexo. Mas, em muitos outros casos, como o meu, foi preciso apenas de um pouco de paciência.

E é importante que, apesar dos obstáculos que existem no processo e que nos distanciam da Europa, falemos sobre a apostasia. E que quem estiver interessado pelo menos tente. Primeiro, porque é uma questão de liberdade religiosa. E, segundo, porque um grande número de apostasias nos convidaria a nos perguntarmos se queremos que se destine tanto dinheiro público à religião católica ou se queremos utilizá-lo para fins mais sociais.

Texto redigido por Álvaro Llorca a partir de entrevistas com Marta Sintes

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