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Sem se adaptar à Argentina, família de refugiados sírios volta a Aleppo

Programa de acolhida do país vizinho tem baixa adesão; trabalho e língua são problemas relatados

Carlos E. Cué
As famílias Touma e Barbar na Argentina.
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No dia em que Tawfiq Touma falou aquilo pela primeira vez, ninguém podia acreditar. “Quero voltar para Aleppo, não aguento mais, sinto falta de muitas coisas.” Tawfiq vivia com sua mulher, Ani, e suas duas filhas adolescentes em Pilar, um pequeno povoado perto de Córdoba, a 700 quilômetros de Buenos Aires. Tinham chegado lá graças a um programa de acolhida de refugiados de guerra sírios. Mas não conseguiram se adaptar e preferiam voltar.

A Argentina, terra de imigrantes, tem uma importante comunidade de origem síria – que inclui o ex-presidente Carlos Menem e a esposa de Mauricio Macri, Juliana Awada – e decidiu abrir as portas para os refugiados de lá. Mas as coisas não são tão fáceis como podem parecer. Dos 3.000 que eram esperados, só 50 apareceram, e alguns estão pensando em voltar para a Síria, porque consideram a adaptação muito dura e o idioma muito complicado.

Os Touma são os primeiros a terem voltado. Estavam desesperados. Tanto que preferiram regressar à sua terra, devastada por uma guerra civil que já deixou entre 320.000 e 450.000 mortos, 1,5 milhão de feridos e cinco milhões de refugiados. No aeroporto de Buenos Aires, há algumas semanas, Tawfiq e Ani, nervosos, mas convictos da sua decisão, tentavam explicar ao EL PAÍS por que achavam que estariam melhor em Aleppo, coração do drama sírio, do que nos pacatos pampas argentinos. “Já não há mais guerra, está mais tranquilo, sobretudo no nosso bairro”, insistia ele poucos minutos antes de embarcar. Ao seu lado, enquanto suas filhas davam voltas antes de subir no avião, inquietas diante da aventura, Ani se empenhava em justificar uma decisão que surpreendeu a todos. “Meu marido quer voltar. É preciso ter muito trabalho para morar aqui, e não conseguimos. Ele não se conectava com ninguém, passava o dia todo fumando, ansioso, não tinha amigos. Aqui é lindo, mas também em Aleppo há coisas lindas.” Pareciam inclusive incomodados com a incompreensão de alguns.

Tawfiq tem as costas destroçadas porque um televisor caiu em cima dele depois de uma explosão. Não pode fazer trabalhos pesados. E, como nunca conseguiu aprender espanhol, tampouco podia aspirar a outro ofício. Em Aleppo ele é dono de uma perfumaria, para a qual voltou. Nesta semana, enviou a seus contatos na Argentina mensagens de voz dizendo que estão bem, que a casa deles e a perfumaria continuavam de pé. Mandou fotos da loja cheia de coisas, pronta para vender. Dizem que a vida é difícil em Aleppo, mas não se arrependem de voltar.

Taufiq Touma, de volta à sua perfumaria em Aleppo.
Taufiq Touma, de volta à sua perfumaria em Aleppo.

“Estamos muito bem, estamos contentes de estarmos aqui”, repetem Tawfiq e Ani nas mensagens. Eles têm dificuldades para se comunicar, porque têm poucas horas de eletricidade disponível. Não há água potável, e precisam comprar garrafões. Ter uma geladeira é inviável, por causa do racionamento elétrico, num rodízio por bairros, e por isso eles compram a apenas comida do dia. Tawfiq está procurando dinheiro para voltar a fabricar seus próprios perfumes.

A história dos Touma faz parte de um documentário, Aryentin, que conta o périplo de seis famílias sírias que chegaram ao país austral fugindo da guerra. Produzido pelo Grupo Documenta, integrado por Fernando Lojo, Carlos Celaya, Gonzalo Lantarón, Darío Arcella, Marina Rubino e Macarena Macro, o projeto segue os passos dos imigrantes e sua tentativa de se adaptarem um país tão diferente e longínquo. Há casos de sucesso, alguns de fracasso, e muitos outros de dúvidas.

O Governo argentino só faz a gestão e entrega os vistos dentro do chamado Programa Síria, mas é o “chamador”, um voluntário argentino, que precisa se encarregar das famílias durante um ano. Há outra família em Córdoba que brigou com a pessoa que lhe foi trazida, a qual então se refugiou em uma igreja. Até a polícia precisou intervir.

Os Touma tiveram sorte. Seu anfitrião, um argentino de Pilar que prefere não ter seu nome publicado – pois acha que isso feriria o caráter altruísta da sua iniciativa –, se encarregou de tudo. Conseguiu casa para a família, escola para as meninas e até um carro. E lhes pagava todos os gastos. Deixou tudo preparado para que se adaptassem. Na verdade, os chamou porque já havia acolhido uma família síria, a os Barbar. A mulher, Mari, é irmã de Ani, a mãe dos Touma. Também têm duas filhas.

Hafez Barbar conseguiu trabalho rapidamente, ao contrário de Tawfiq. Também tem graves ferimentos de guerra, sobreviveu a um carro-bomba que o manteve de cama por um ano e meio, mas é um bom soldador e conseguiu colocação no povoado. Sua mulher, enquanto isso, começou a sentir muita saudade da Síria. Estava cada vez pior. E o anfitrião achou que a melhor maneira de resolver isso seria trazendo a irmã dela. As duas famílias se reuniram, mas Tawfiq não tinha nenhum ofício e nunca conseguiu se adaptar.

"Meu problema eram as costas e o idioma. Não posso conseguir um trabalho para manter a minha família. Não posso viver toda a vida dependendo dos outros, quero ser independente. Viemos para mudar de vida, para ter um futuro melhor para nossos filhos. Mas não podia conseguir isso aqui, e tinha medo de perder mais coisas. Em Aleppo estão meus amigos, minha família, vivi toda a minha vida lá, acho muito difícil construir isso de novo na Argentina. Não me acostumei”, conta Tawfiq, que entende a surpresa que seu regresso causa, mas recorda que isso é algo que acontece com muitos emigrantes. “Quando vim para cá, passou o medo que eu tinha ao vir embora”, insiste.

O anfitrião está frustrado, embora tranquilo por saber que os Touma estão bem em Aleppo. As duas famílias são cristãs, e foi um padre argentino radicado na Síria que as incentivou a viajarem ao país sul-americano e os desaconselhou a voltar. “Achei que o importante era tirá-los da zona de guerra. Mas eles deveriam buscar uma vida melhor. Foi mais forte o desejo de voltar do que o medo. Ele diz que a guerra se deslocou. Ele ama muito as suas filhas, não acredito que sejam tão suicidas a ponto de irem para lá se houver perigo de morte. A imigração mudou muito. Há 100 anos, quando você ia embora rompia todo o vínculo. Os Touma estavam conectados a Aleppo pelo WhatsApp diariamente. Estavam certos de que podiam voltar, e por enquanto estão bem, embora com muitas limitações. Ele não via que na Argentina pudesse ganhar o necessário para viver, aqui é muito mais caro que a Síria”, diz o anfitrião.

O furto de algumas mochilas na casa que havia sido destinada à família na  Argentina também contribuiu para o desespero dos Touma. Além disso, eles eram gente da cidade, que não se acostumou à vida numa zona rural. Falavam muito, por exemplo, do medo que sentiam dos cachorros de rua. Apesar do fracasso, o chamador guarda uma satisfação: os Barbar ficam. “Hafez me disse: ‘Não tem volta. Não tenho para onde regressar’.” Os Touma preferiram Aleppo. E por enquanto não se arrependem.

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