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Os senhores da guerra acumulam fortunas na Síria

Soldados regulares, insurgentes e comerciantes fazem grande negócio graças ao contrabando de produtos básicos entre fronteiras e nos cercos do conflito

Um soldado regular sírio observa o posto de controle insurgente que dá acesso à sitiada localidade da Moadamiya.
Um soldado regular sírio observa o posto de controle insurgente que dá acesso à sitiada localidade da Moadamiya./NATALIA SANCHA
Natalia Sancha

Já faz sete anos que a economia síria se consome sob o peso da guerra. O Banco Mundial estima em 886,5 bilhões de reais os prejuízos decorrentes do conflito. E, entretanto, nas duas beiradas de uma economia murcha surgem os senhores da guerra. Soldados regulares, paramilitares, milicianos insurgentes e também comerciantes comuns acumulam pequenas fortunas nas fronteiras, nos cercos e inclusive em passagens subterrâneas graças ao contrabando de produtos básicos, de medicamentos e do tráfico humano. Enriquecidos à custa da miséria alheia, os novos senhores da guerra desdenham a paz para perpetuar uma luta lucrativa.

“Se um quilo de arroz custa um euro [3,65 reais] em Damasco, em Duma pagamos 25”, queixa-se Rima Hamid, que há dois anos conseguiu escapar do cerco na periferia nordeste de Damasco, e hoje é refugiada no Líbano. Assim como muitas de suas vizinhas enviuvadas na guerra, Hamid teve que vender barato as suas poucas joias de ouro para alimentar os filhos pequenos. O comerciante que levou arroz de Damasco naquele dia pagou uma primeira propina no controle oficial, e uma segunda no controle rebelde. Somou então 30% de lucro, e Hamid pagou a fatura. Em poucas horas, esse mesmo comerciante revendia o ouro da viúva nos mercados de Damasco pelo dobro do preço. Negócio redondo.

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Mais de um milhão de pessoas se encontram retidas detrás dos 39 cercos do país. O Instituto do Oriente Médio responsabiliza as tropas regulares sírias por 78% dos sítios, o Estado Islâmico por 19%, e outros grupos armados por 3%. O caso mais representativo da economia dos cercos é o passo de Wafidin, batizado como o passo do milhão, que era em 2014 o único acesso à sitiada Ghouta, na periferia ocidental de Damasco. A dupla transposição das fileiras governamentais e rebeldes gerava até um milhão de libras sírias (cerca de 18.000 reais, pelo câmbio atual) em subornos por hora, até 3.700 reais por caminhão.

Estima-se que 60% da população ativa do pré-guerra tenham perdido seus empregos e sejam vítimas da hiperinflação, por isso a sobrevivência das famílias depende cada vez mais das remessas – um influxo estimado em 5,2 bilhões de reais pelo Banco Mundial em 2015. De novo, o extinto sistema bancário nas zonas insurgentes foi substituído por ávidos comerciantes transformados em prestamistas. “Meu irmão em Istambul recebe o dinheiro do Ocidente via Western Union. Quando me dá o OK, eu entrego às famílias aqui o equivalente em libras sírias, por uma comissão de 5%. Outros cobram até 20%”, diz ao telefone, como quem se desculpa, o prestamista Khaled, que atua na periferia sul de Aleppo.

“Embora sejam cifras muito gerais, a economia informal responde por 50% na Síria”, calcula, numa conversa por email, Ferdinand Arslanian, pesquisador da Universidade de St. Andrews, na Escócia. De todos os negócios, a revenda de eletrodomésticos é o menos lucrativo, já que a falta de eletricidade os transformou em tranqueiras inúteis. Nas lojas de Damasco, geladeiras, lavadoras de roupa e aquecedores elétricos se amontoam atrás de uma grande variedade de móveis. “Bitfaresh [catar a mobília, um neologismo árabe], o novo verbo criado durante a guerra para quando membros da Defesa Nacional [paramilitares pagos pelo Governo] saqueiam cidades recém-liberadas!”, diz com indignação a dona de casa Meriam, de Damasco, por telefone. Essa mesma pilhagem, feita pelos rebeldes, acontece nas zonas insurgentes.

Com o recrudescimento dos combates, o passo do milhão foi fechado, e os milicianos optaram por cavar túneis através dos quais se abastecem com armas. Atraídos pelo botim, os diferentes grupos armados transferiram sua guerra intestina para o subsolo, disputando o monopólio dos túneis e, consequentemente, o suculento contrabando de alimentos e outros produtos. Algo que provocou mais de um protesto dos cidadãos, fartos de verem sua miséria gerar novos-ricos. “Quando há trégua, os preços baixam. Quando os combates se reiniciam, sobem. Aconteça o que acontecer, continuamos morrendo de fome, e eles continuam fazendo caixa”, acrescenta Rula, uma irmã de Hamid ainda retida em Duma, via mensagem de voz.

Contrabando de fronteiras

Tanto o Líbano como a Jordânia passaram o cadeado nas suas fronteiras, ao passo que o EI controla a do Iraque. Hoje, são os contrabandistas instalados na fronteira norte e nordeste, com a Turquia, que fazem fortuna com a guerra. Em Idlib, última província nas mãos insurgentes e fronteiriça com a Turquia, os salafistas do grupo Ahrar el Sham e os jihadistas do Fattah al Sham (antiga filial da Al Qaeda) estão no comando. Segundo voluntários e ativistas locais, são eles que administram a ajuda humanitária que entra, fazendo uma distribuição desigual em beneficio de familiares e amigos.

Amparados pelo caos, voltam à ordem do dia os sequestros-relâmpago e as máfias que controlam os geradores privados, as quais nem os Comitês Locais de Oposição conseguem controlar. “Compram os geradores na Turquia por 2.000 euros [7.300 reais] e depois nos cobram entre dois e quatro euros [7,30 a 14,60 reais] por ampere”, murmura, via Whatsapp, a deslocada Nisrine, mãe de dois filhos, que deixa 30% da sua renda mensal no custeio de seis horas diárias de eletricidade.

Embora cheguem caminhões da Turquia, não sai nem um só refugiado. Algo que favorece os traficantes, que embolsam entre 1.500 e 4.500 reais por pessoa atravessada ilegalmente. É verdade que por esta fronteira já saíram faz tempo os empresários e trabalhadores sírios arrastando consigo máquinas e equipamentos. Segundo cifras do Fundo Monetário Internacional, os sírios respondiam em 2014 por 26% das novas empresas abertas na Turquia. O que explica que as exportações turcas para a Síria tenham recuperado o nível de antes da guerra, superando os 5,8 bilhões de reais por ano.

Da aspirinas a anfetaminas

N.S- Beirut

O setor farmacêutico sírio acabou sucumbindo à guerra. Em 2010, a Síria atendia 90% das suas necessidades com a produção local, e inclusive exportava na região. Agora, no sétimo ano de conflito, os sírios precisam curar a bronquite com aspirina, porque falta amoxicilina. “Entre o embargo internacional e a destruição das fábricas, os estoques se esgotaram”, relatava a farmacêutica Rania a este jornal em janeiro, em Damasco.

Mais angustiante é o caso dos doentes crônicos de diabetes ou câncer que morrem por falta de tratamento. Junto com a escassez de médicos, especialmente em zonas sob controle insurgente, onde os hospitais se transformaram em alvo militar, a ausência de fármacos condena os mais frágeis. Depois dos primeiros quatro anos de conflito, os sírios perderam oito anos de expectativa de vida, passando de 76 anos em 2010 para 64 em 2014, segundo cifras do Centro Sírio para a Pesquisa Política.

Entretanto, as fábricas farmacêuticas em áreas insurgentes continuam ativas, mas sob a supervisão dos rebeldes armados. Com uma fórmula fácil e algumas substâncias químicas acessíveis, eles incrementaram a produção de fenetilina, uma conhecida anfetamina cujo comprimido é vendido a preços que variam de 15 a 65 reais por unidade. Nada acessível para a paupérrima economia síria, mas seus consumidores prediletos se encontram no golfo Pérsico. Embora a produção de fenetilina no Líbano tenha diminuído 90% depois do início da guerra síria, os agentes da Unidade Antidrogas libanesa continuam atarefados e chegaram a apreender em sua fronteira cargas avaliadas em mais de 360 milhões de reais.

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