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Coluna
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Esse olhar que não nos julga

Somente uma criança não te julga, nem se interessa pelo que você compra ou o que veste, se você é pobre ou rico, jovem ou velho, feio ou bonito

Juan Arias
Crianças da vila palestina de Deir Ibzi.
Crianças da vila palestina de Deir Ibzi.ABBAS MOMANI (AFP)
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Nós adultos, quando nos olhamos já estamos nos julgando. Não precisamos estar diante de um tribunal de justiça. Desde que aparecemos na cena do mundo já somos minuciosamente examinados. Dizem que somos parecidos com alguém, o nariz do pai, a boca da mãe, o queixo do avô. Nascemos sendo retrato dos outros.

Crescemos e continuamos a ser julgados. Hoje nos observam por mil janelas, algoritmos invisíveis. Sabem o que gostamos ou nos desagrada, o que pensamos e o que desejamos. Os robôs se encarregam até de nos lembrar do que eles acreditam que gostaríamos de comprar. Somos observados por mil olhos espalhados pelo planeta. Logo poderemos ser vistos até mesmo do cosmo. Vistos e julgados.

Existirá alguém ou algum lugar onde não nos julguem, onde nos aceitem como somos, onde não nos perguntem nada, onde não nos examinem e onde desejem apenas que existamos? Sim, o mundo dos pequenos, quanto menores, melhor. Somente uma criança não te julga, nem se interessa pelo que você compra ou o que veste, se você é pobre ou rico, jovem ou velho, feio ou bonito. As crianças compartilham com você sua presença, para brincar com elas. Elas te amam se você as ama. Não te perguntam nada.

O menino ou a menina não vê minhas rugas, não repara se eu ando erguido ou encurvado pelo tempo, não lhe importa o que ganho ou o que sonho. Não entende que eu posso me cansar. Sou sempre, para ele, seu super-herói.

Fora deste planeta, os olhares dos outros se tornam juízos. Minha filha Maya, quando era muito pequena e já ia à escola, gostava que as mães levassem para casa suas colegas para brincar. Com meus preconceitos de adulto, tentava indagar o que os pais delas faziam. Minha filha me olhava espantada e me dizia: “Sei lá!” E se eu insistia, ela respondia: “Não me interessa o que os pais delas são. Eu gosto das minhas amigas e pronto”.

Hoje os meios de comunicação publicam, cada vez mais frequentemente, estudos sobre como transformar nossa dura rotina diária em lugares e momentos de simples prazer. Incitam-nos a saborear as “pequenas alegrias”.

Teriam de nos lembrar que existe esse mundo infantil, um paraíso perdido, onde podemos nos espelhar e nos refugiar sem que sejamos julgados, e onde somos sempre acolhidos com o frescor da primeira vez.

O escritor italiano da máfia, Leonardo Sciascia, me disse que não somos inocentes nem quando nascemos. É verdade, mas é verdade que o mundo da infância, com seus espaços de fantasia ainda não contaminados pelo pecado de julgar, nos oferece esse lugar onde podemos nos sentir protegidos do o olho escrutador do Big Brother.

O mundo adulto anda cada vez mais inquieto e cético, incapaz de aceitar que também pode haver momentos de descanso e poesia, de silêncio e aceitação, de perdão e não apenas de raiva e brigas.

Se há algo que faz as crianças sofrerem e se sentirem adultos prematuramente é ver seus pais brigando. Eles nos querem juntos e felizes. Choram, mas não gostam das lágrimas dos adultos. Elas lhes dão medo e insegurança. Obrigam-lhes a crescer fora do tempo, como as guerras empurram os adultos ao envelhecimento. Também as guerras verbais — que abundam nas redes sociais —, que matam, às vezes, mais do que as armas de fogo.

São as crianças que mais e melhor amam a paz. Não devemos lhes dar, por favor, brinquedos de guerra. Melhor os que cultivam suas fantasias e ilusões. Tempo terão de dar de cara com a violência que embrutece a Humanidade.

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