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Mundo ergue cerco às pseudoterapias por ‘cura gay’

Organização produz mapa dos direitos e da perseguição à comunidade LGBTI pelo mundo. Brasil é um dos três países que vetam "curas", mas projeto na Câmara quer mudar regra

Parada Gay em São Paulo.
Parada Gay em São Paulo.Paulo Pinto / Fotos Públicas

Acampamentos para adolescentes que oferecem “a cura” da homossexualidade. Grupos de apoio para “corrigir” a orientação sexual. Psicólogos que afirmam poder “reverter” a atração entre pessoas do mesmo sexo. Associações que oferecem ajuda para “sair da homossexualidade”. São as conhecidas “terapias antigay”, pseudotratamentos que, apesar dos alertas da maioria das associações médicas e científicas, divulgam sem barreiras, em um grande número de países, organizações homofóbicas — muitas delas com profundas raízes religiosas — e supostos conselheiros e psicólogos. Apenas três países — Brasil, Equador e Malta — têm leis que proíbem expressamente esse tipo de prática, que quase todas as associações psiquiátricas consideram não só ineficazes como também prejudiciais.

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No caso brasileiro, a movimentação para tentar derrubar a proibição legal jamais desapareceu. Desde 1999, o Conselho Federal de Psicologia brasileiro proíbe que psicólogos promovam qualquer tipo de tratamento que proponham a cura da homossexualidade, pois a orientação sexual não é considerada uma patologia no país. O Conselho Federal de Medicina também tem este entendimento, mas o veto, no entanto, não impede que pastores evangélicos, principalmente, preguem soluções milagrosas ou terapêuticas para extirpar a homossexualidade dos fiéis. Tanto é que a “cura gay” está de volta ao Congresso pelas mãos de um pastor-deputado.

O responsável por ressuscitar a polêmica é o deputado Ezequiel Teixeira (PTN-RJ). O projeto de lei 4931/2016, hoje na Comissão de Seguridade Social e Família aguardando um relator, pretende acabar com a punição do profissional de saúde mental que tratar o paciente com “transtorno de orientação sexual”. O objetivo da nova lei é garantir o “direito à modificação da orientação sexual em atenção a Dignidade Humana”. Teixeira sempre defendeu o tratamento, inclusive quando foi secretário estadual de Direitos Humanos do Rio. Naquela época, no início de 2016, Teixeira disse ao jornal O Globo: “Poxa, o senhor crê na cura? Eu creio, plenamente. Eu não creio só na cura gay, não. Creio na cura do câncer, na cura da Aids... Sabe por quê? Porque eu sou fruto de um milagre de Deus também”. Logo depois da entrevista, ele foi exonerado.

O tema também segue com ampla cobertura midiática, especialmente nas TVs que levam ao ar programas evangélicos – em geral, as agremiações religiosas alugam os espaços nas grades de programação. Foi também "graças à ação de Deus", que o estilista Ronaldo Ésper declarou recentemente que não era mais homossexual. Ele não se curou “porque ninguém se cura disso”, mas afirmou que conseguiu por sua “força” de vontade ser acolhido pela Igreja Universal. Na entrevista que deu na Rede TV sobre o assunto Ésper contou que um pastor lhe disse: “Mas e os trejeitos?”. E ele falou: “pastor, os trejeitos não vai ter jeito, né?".

Fórmulas para driblar as proibições 

O argentino Lucas Ramón Mendos tinha 23 anos quando contou para sua família que era gay. Pediram, então, que ele fosse ao psicólogo, que falasse disso com alguém especializado. “Me disseram que estavam um pouco inseguros e que assim eles também teriam mais certeza de minha orientação sexual. Tudo na maior inocência e boa fé”, conta Mendos, que hoje é ativista da Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA). “Nessa consulta, o psicólogo me diagnosticou como ‘reversível’ e me propôs um caminho no qual me ofereceria ferramentas para que eu me desfizesse do que chamou de ‘vícios e desvios”, lembra Mendos. Nunca concluiu a pseudoterapia que lhe foi oferecida. “Se hoje tivesse seguido aqueles conselhos, provavelmente não teria autoestima, estaria perto do suicídio, como já vimos casos”, afirma.

Os participantes do desfile anual do dia do orgulho gay sustentam uma grande bandeira de arco íris na cidade de México.
Os participantes do desfile anual do dia do orgulho gay sustentam uma grande bandeira de arco íris na cidade de México.EDGARD GARRIDO (REUTERS)

A experiência de Mendos foi há dez anos. No entanto, como alerta o último relatório da ILGA Homofobia de Estado —do qual o advogado argentino é coautor—, que faz uma radiografia dos direitos das pessoas LGBTI no mundo, estas práticas não desapareceram. E não é só isso. Quem as promove tem variado nas fórmulas para driblar as leis que, como em alguns Estados dos Estados Unidos (entre eles a Califórnia) ou países como a Argentina, tentam estabelecer limites quando praticadas por profissionais de saúde para "tratar" ou "reverter" a homossexualidade; algo que há décadas já deixou de ser considerado uma patologia. Agora usam mais o termo conselheiros, fazem em âmbito privado ou se tornaram grupos de apoio religiosos.

São associações que em sua maioria se baseiam nos ensinamentos da Associação Nacional de Pesquisa e Terapia da Homossexualidade (NARTH), uma entidade norte-americana fundada e liderada por Joseph Nicolosi, recentemente falecido, que trabalha para “prevenir” a homossexualidade em crianças e oferece conselhos e assessoramento a pais para detectar o que chamam de “sinais precoces de pré-homossexualidade ou desconformidade de gênero”. Técnicas como as apontadas por organizações como É Possível a Esperança (EPE), que oferece uma “rede de apoio” em espanhol para reverter a homossexualidade, que considera a “manifestação, o sintoma, a exteriorização” de “feridas, vazios e traumas”.

Medidas similares também são propostas pelos acampamentos Brothers Road, organizados nos Estados Unidos, Polônia, França, Israel e Alemanha. Essa associação sediada nos EUA oferece, por cerca de 2.100 reais, conselheiros e exercícios práticos. Entre eles, por exemplo, olhar outro homem nos olhos para “enfrentar” as emoções que podem surgir. “Todos os exercícios são concebidos para identificar e tratar os problemas subjacentes que possam afastá-lo de sua autêntica masculinidade heterossexual”, afirmam em seu site na Internet.

E alegações semelhantes podiam ser encontradas até há pouco tempo em Malta, onde um rosário de psicólogos oferecia abertamente em suas consultas tratamentos para ajudar a “reorientar” a sexualidade de um indivíduo. Desde dezembro passado isso foi proibido. O pequeno país, de menos de meio milhão de habitantes, se tornou o primeiro país da Europa a criminalizar todos os tratamentos ou terapias de conversão, por quem quer que os aplique: médicos, psicólogos, terapeutas, religiosos. Quem tentar reprimir ou eliminar a orientação sexual de um indivíduo pode enfrentar uma multa de até 5.000 euros (cerca de 17.500 reais) e uma pena de cinco meses de prisão. Uma iniciativa acompanhada de outra série de medidas na mesma linha —entre elas uma lei muito avançada de reconhecimento da identidade de gênero— que contrastam com a restrição dos direitos reprodutivos, entre eles o aborto, completamente proibido no país.

Mapa mundial da perseguição

As pseudoterapias contra a homossexualidade sobre as quais fala a ILGA, e que outros países —como a Espanha— começam a condenar com a aprovação de leis contra a LGBTI-fobia e crimes de ódio, são apenas um exemplo de que a perseguição enfrentada por esse grupo ainda é uma realidade brutal. No entanto, não é a única. Em pleno 2017, as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo são ilegais ainda em pelo menos 72 países —a maioria, de homens; em 45 deles, também de mulheres. E, em 12 deles (ou partes de seu território), podem chegar à pena de morte, como aponta o relatório da ILGA, publicado na segunda-feira, dia 15 de maio. Quatro países —Arábia Saudita, Irã, Iêmen e Sudão—, parte de Somália e 12 Estados da Nigéria preveem em suas leis a pena de morte para estas relações. Agentes não estatais (fundamentalmente o Estado Islâmico) a aplicam no Iraque e na Síria. Além disso, Catar, Mauritânia, Paquistão e Emirados Árabes Unidos mantêm a possibilidade de aplicá-la, apesar de não haver evidência de execuções nos últimos anos por relações consensuais em privado.

O relatório da ILGA, produzido com dados de 2016 e que não fala dos casos da Chechênia, onde prisões e torturas de homens identificados como gays foram divulgados este ano, dá conta de prisões, processos e condenações de pessoas por manterem relações com pessoas do mesmo sexo em mais de 40 países. Delitos que, segundo o país, podem ser chamados de “atos contra a natureza”, “sodomia”, “promoção de valores não tradicionais”, “moralidade” e “indecência grave”. Em lugares como Uganda, Zâmbia, Tanzânia, Índia, Barbados e Guiana são previstas penas entre 14 anos de prisão e prisão perpétua para quem tiver relações homossexuais. As leis de outros, como Líbia, Argélia, Marrocos e Samoa incluem penas entre três e sete anos de prisão.

“E com frequência as prisões são realizadas pela polícia com o objetivo de subornar ou obter favores sexuais de pessoas em situação de vulnerabilidade. Nem sempre são seguidas de processos judiciais”, afirma Mendos no relatório, que insiste que essas prisões tentam também causar um efeito restritivo. Como no Malauí, onde em 2016 a polícia prendeu dois homens em sua casa por fazerem sexo entre si, os obrigou a fazer exame de sangue para o diagnóstico de doenças de transmissão sexual e os acusou de “relações carnais ilegais contra a ordem natural”. Enquanto isso, dois países, Belize e Seychelles, aboliram as leis que criminalizavam a homossexualidade.

O documento é uma triste radiografia das legislações do mundo, que mostra que no século XXI 37% dos Estados membros da ONU mantêm normas punitivas. Uma violação dos direitos humanos que resiste a desaparecer e que tenta ofuscar a vitória de grandes batalhas, como o avanço do reconhecimento do casamento igualitário —legal já em 23 países; ou a aprovação de leis para ressarcir os gays condenados por isso, como as aprovadas na Alemanha e no Reino Unido.

A ILGA alerta também para a proliferação das leis de moralidade ou propaganda, que estão em vigor em 19 países. Normas que proíbem desde falar da homossexualidade (como na Rússia) até a inscrição em clubes, organizações e manifestações gays (como no caso da Nigéria).

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