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A fuga por amor de Jimena e Shaza

Casal de lésbicas teve de fugir de Dubai pela Turquia até uma cidadezinha de Málaga, na Espanha

Manuel Jabois
Jimena Rico e sua namorada egípcia Shaza.
Jimena Rico e sua namorada egípcia Shaza.Jaime Villanueva

Quando finalmente se encontraram, depois de se conhecerem pela Internet, Jimena Rico perguntou a Shaza Ismail por que estava apaixonada por ela. Shaza lhe disse: “Porque posso ver meu futuro em seus olhos”. Jimena mandou tatuar essa frase no dorso de sua mão esquerda: “I can see my future in your eyes”. Na época, Jimena, de 28 anos, prometeu a Shaza que nunca a deixaria para trás.

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Shaza, de 21 anos, era filha de uma família egípcia rica, muçulmana, que vivia em Dubai e tentava a todo custo arranjar seu casamento. Ela e Jimena tinham vida de namoradas na casa dos pais de Shaza; tomavam café, jantavam e dormiam juntas diante dos olhos de duas pessoas para quem a ideia de homossexualidade é tão marciana que jamais lhes passou pela cabeça que fossem namoradas. Em um quarto, os pais de Shaza planejavam seu casamento; no quarto ao lado, Shaza dormia com Jimena. Se Shaza viu seu futuro nos olhos de Jimena, é estranho que não tivesse se assustado.

A relação começou por acaso. No início de 2016, a empresa em que Jimena trabalhava a enviou a um estabelecimento de luxo de Dubai para servir os coquetéis que preparava em Londres. Assim que voltou à Inglaterra, país para o qual tinha imigrado saindo de Torrox (Málaga), abriu o Tinder e as primeiras meninas que apareceram eram de seu destino anterior. Assim Shaza Ismail apareceu em sua vida.

Jimena deu um match, uma proposta para começar a conversar. E em Dubai, a mais de 7.000 quilômetros, Shaza abriu o Tinder para apagar o aplicativo. Foi assim que viu pela primeira vez o rosto de Jimena. Começaram a conversar; em 6 de junho de 2016 Jimena comprou uma passagem para Dubai. “Assim que a vi no aeroporto me apaixonei perdidamente”, disse Jimena. Shaza tinha ido buscá-la com uma amiga. Entraram no carro e ao saírem do aeroporto e passarem por uma rotatória, um caminhão investiu sobre o carro, que capotou.

O acidente não provocou ferimentos nas meninas. Nos dias seguintes a família de Shaza conheceu Jimena. A irmã mais velha, que suspeitava de sua homossexualidade e disse que seus pais a matariam se soubessem, falou que Jimena tinha namorado e se casaria na Espanha. Jimena se deu bem com a mãe e a irmã caçula da namorada. O pai foi mais frio. Esta semana, o homem disse ao canal espanhol de TV Antena 3 que pressentiu alguma coisa: “Eu sou um bom homem e percebi que ela não era”. Jimena alugou um quarto no 18º andar, seis acima do de Shaza. Mas sempre dormiam juntas no quarto de Shaza.

Em uma das idas e vindas de Jimena, que cada vez passava mais tempo em Dubai, a mãe de Shaza anunciou à filha que tinha negociado seu futuro marido. Shaza se negou a conhecê-lo, mas a vontade familiar foi imposta e marcaram um encontro. “Foi o pior momento de nossas vidas”, dizem. Jimena, Shaza e a mãe de Shaza saíram para fazer compras em Dubai para que a menina estivesse o mais bonita possível no dia. “Eu estava com um nó na garganta, não parava de chorar”, conta Jimena. Shaza já tinha tido outro encontro que não tinha ido adiante. Nesta ocasião não teve tanta sorte: o homem, piloto da Emirates, gostou de Shaza. Comunicou à família que queria vê-la no dia seguinte. Shaza se negou. A pressão da família sobre ela aumentava.

“Shaza viveu como lésbica com uma família que não aceita a homossexualidade e em um país no qual é castigada com penas que vão dos 14 anos de prisão à pena de morte”, diz Jimena, hispano-argentina. Quando voltou a Londres, Shaza planejou ir morar lá também. Fez isso com uma tramoia que mostra em seu celular: um cartaz falso anunciando uma viagem a Londres de sua universidade (estudava Marketing). Ela mesma o fez, pregou na faculdade e mostrou ao pai dizendo que queria ir. O homem concordou: fez seu visto e pagou as passagens. Shaza e Jimena foram livres pela primeira vez a Londres. Um dia antes da data de volta de Shaza a Dubai, a egípcia escreveu um whatsapp para a mãe anunciando que era homossexual e que estava apaixonada por Jimena. Que ficaria em Londres.

A bomba estourou na casa dos Ismail. Para eles a homossexualidade não é natural: se aparece, tem de ser tratada. O pai de Shaza enviou vários áudios ao WhatsApp da filha. Neles, chora e lamenta enquanto lhe diz que sua mãe voltou de férias do Egito gravemente doente e que não se preocupasse com o relacionamento: que o aceitavam. A chantagem funcionou: Shaza viajou a Dubai alarmada com o estado da mãe, mas levou Jimena com ela.

O casal em uma imagem de Snapchat.
O casal em uma imagem de Snapchat.

No aeroporto, o pai de Shaza e a irmã caçula foram buscá-las. “O pai dela nem me olhou. Entramos no carro os quatro e fomos para a casa dela em silêncio, era uma situação superviolenta.”

Já em casa, foi para o quarto de Shaza e Shaza se fechou na sala com os pais. “Foram três ou quatro horas intermináveis. Não parava de ouvir gritos.”

Quando Shaza chegou ao quarto, disse a Jimena que tinha de ir embora, que seu pai tinha lhe comprado uma passagem de volta e que também lhe daria dinheiro. Que ela, Shaza, jamais poderia ter uma relação com uma mulher, e que sua mãe estava muito bem de saúde. “Peguei a passagem e o dinheiro que o pai dela me deu, e em vez de ir para o aeroporto fui para a casa de um amigo. Ali comecei a trocar mensagens com Shaza”, diz Jimena. O pai de Shaza, por sua vez, trancou seu passaporte no cofre para evitar sua fuga. A essas alturas, por volta das oito da noite, começou a maior de suas aventuras.

O Whatsapp entre as duas meninas serve para reconstruir a ação até seu reencontro: as horas decisivas da fuga de Jimena e Shaza. Shaza diz a Jimena que vai com ela de qualquer jeito, mas para isso tem de abrir o cofre. Escreve a ela que está procurando vídeos no YouTube sobre como abri-lo (o histórico do YouTube do celular de Shaza está cheio de tutoriais) e vai lhe informando de seus avanços. Ela encontra um vídeo (How to open a 3-dial combination lock case in 6 minutes or less) publicado pelo usuário Cannonball Music, que acaba sendo fundamental.

Depois das onze da noite, tocou o celular de Jimena; eram três whatsapps de Shaza que diziam o mesmo: “Omg”, “omg”, “omg” (abreviatura de Oh, my God: Oh, meu Deus). Shaza tinha aberto o cofre. Jimena diz que vai olhar rapidamente passagens de avião “para onde for”. O primeiro destino que propõe é Tailândia. Encontra mais tarde um voo para Tiflis, capital da Geórgia, de onde poderiam tentar chegar a Londres (Shaza não tem visto para viajar para lá, mas com seu passaporte pode chegar à Geórgia). A egípcia bloqueia a porta de seu quarto e sai de casa; nunca mais voltou.

O pai de Shaza também voou para a Georgia em sua perseguição. O casal acredita que uma das amigas de Shaza, com a qual estavam em contato, se comunicava com a família dela. Também suspeita que o pai de Shaza contratou detetives. Uma terceira pessoa, ex-namorada de Shaza, travou conversas violentas por WhatsApp com Jimena nesses dias. A hispano-argentina lhe dizia que já estavam na Espanha; a ex-namorada de Shaza lhes comunicava um suposto rastro de horrores que as duas tinham deixado em Dubai, incluída a fuga do cachorro de Shaza, Romeu.

Quando estavam a ponto de sair de Tiflis para Londres, o pai de Shaza as interceptou no aeroporto. Aí aconteceu uma discussão: o homem fingiu um infarto, rasgou o passaporte de Jimena, que o ameaçou de morte, e quis levar a filha à força. Foi preso.

A Geórgia transportou o casal até a fronteira turca, de onde se deslocaram de ônibus para a cidade de Samsun, onde foram retidas. Depois de sair e chegar a Istambul foram presas e mantidas incomunicáveis, segundo Jimena, por suspeita de terrorismo. A situação de instabilidade do país, o périplo errático das mulheres e sua documentação recente conseguida online despertaram as suspeitas das autoridades turcas. Jimena acrescenta outro motivo fundamental: a homofobia. Quando pôde entrar em contato com sua família e o caso saiu à luz, a Espanha forçou a Turquia a agilizar a deportação do casal, que voltou para Barcelona no feriado de 1º de maio.

Restam três dias de estadia legal na Espanha para Shaza. Ao casal, que está aparecendo em todos os canais de TV, foi oferecido trabalho em Marbella em um resort de luxo, serviços jurídicos para formalizar a permanência de Shaza e uma escritora se dispôs a escrever um livro sobre elas. Anunciaram que querem se casar. E a mãe de Shaza escreveu para ela dizendo que se isso ocorrer vai se suicidar atirando-se pela janela e que a única responsável será Shaza.

“Ela a ama, mas não entende o que acontece: é a interpretação feita por sua religião, por seu mundo”, diz Jimena. Continuam com medo. “Isso chegou a todo lugar. Qualquer extremista pode nos matar.” Shaza implora a sua família que mande seu cachorro, Romeu, para a Espanha. A família pede que ela volte para ser tratada por um médico.

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