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Morre Miguel Ángel Bastenier, mestre de jornalistas espanhóis e latino-americanos

Veterano especialista em política internacional foi subdiretor e professor da Escola de Jornalismo do EL PAÍS e da Fundação Novo Jornalismo Ibero-Americano

Bernardo Marín

O jornalista Miguel Ángel Bastenier, um dos maiores especialistas em política internacional na imprensa mundial em idioma espanhol, além de ter sido professor de várias gerações de jornalistas, morreu nesta sexta-feira, em Madri, aos 76 anos, em decorrência de um câncer renal. Trabalhou nas últimas três décadas no EL PAÍS, onde desempenhou cargos como os de subdiretor de Informação e subdiretor de Relações Internacionais, até 2006. Paralelamente, atuou como professor na Escola de Jornalismo do EL PAÍS, onde ajudou a formar várias gerações de jornalistas que hoje desempenham seu trabalho em todo tipo de veículos, no mundo inteiro. Também foi professor na Fundação Novo Jornalismo Ibero-Americano, em Cartagena (Colômbia).

Bastenier durante uma aula na escola de jornalismo do EL PAÍS, em 2003.
Bastenier durante uma aula na escola de jornalismo do EL PAÍS, em 2003.Raúl Cancio
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Leia os artigos de Miguel Ángel Bastenier, em espanhol
A velha queixa da objetividade

“Professor, eu sou. Mestre é só uma teoria”, costuma dizer. Mas, para as centenas de alunos que teve em seus mais de 30 anos como docente, Miguel Ángel Bastenier foi sem dúvida um Mestre do Jornalismo, com maiúsculas, com toda certeza o mais popular e influente das últimas décadas em língua espanhola. Sua adesão inegociável às regras básicas do ofício, sua obsessão pelo bom uso do idioma e sua didática personalíssima, temperada com enormes doses de ternura e senso de humor, marcaram várias gerações de profissionais da Espanha e de toda a América Latina. É difícil não encontrar jornais relevantes, tanto da Europa como das Américas, algum de seus discípulos. A maioria deles são procedentes das duas grandes academias que foram também sua casa: a Escola de Jornalismo do EL PAÍS e a Fundação Novo Jornalismo Ibero-Americano.

Bastenier reunia todas as condições para ser um excelente professor de jornalismo. Ele próprio era um repórter e articulista extraordinário. Adorava ensinar, que ou escutassem, mas também ouvir e transformar suas aulas em animadíssimos debates. E aproveitava bastante o contato com seus alunos, a quem às vezes cuidava como se fossem sobrinhos postiços, em especial os latino-americanos. Enquanto não chegaram a mil, gabava-se inclusive de se lembrar de cada um pelo nome e sobrenome.

Chegava sempre pontualmente para as aulas. Nas oficinas que coordenava em Cartagena (Colômbia), às vezes aparecia com várias horas de antecedência e matava o tempo lendo todos os jornais concebíveis, em vários idiomas, e, nos últimos tempos, refletindo e debatendo com suas dezenas de milhares de seguidores no Twitter. Nas correções, era implacável e politicamente incorreto. Mas combinava tão bem a severidade com a ironia e o carinho que alguns de seus comentários demolidores eram recebidos com risos por seu próprio destinatário e pelo resto dos alunos. Porque em suas aulas se aprendia, mas também se ria muito. Talvez porque o senso de humor seja também um dos requisitos imprescindíveis para que alguém chegue a ser um grande jornalista.

Bastenier era muito didático e se orgulhava por sua vez da excelente educação que recebera em um colégio de padres de Barcelona, que não lhe deixou trauma algum, apesar da época de nacional-catolicismo que lhe coube viver. Lá se forjou sua peculiar relação com a religião, que o levava a se proclamar agnóstico e ao mesmo tempo católico, porque, como costumava dizer, “não é tanto uma questão de crenças, mas sim de pertencimento”. Desde menino, desenvolveu também uma grande afeição pela leitura. E sua vastíssima cultura, acompanhada por uma memória prodigiosa, lhe permitia salpicar suas aulas com uma assombrosa quantidade de citações e dados. Também as amenizava com histórias da sua carreira profissional, de encontros com personagens como Arafat ou Fidel Castro, e outras, sempre divertidas, de sua vida pessoal, como o causo, muito celebrado pelos alunos, de como uma ex-namorada havia tentado envenená-lo.

Adorava ensinar, que lhe escutassem, mas também ouvir e transformar suas aulas em animadíssimos debates

Era um construtor inigualável de aforismos sobre seu ofício e sobre o idioma espanhol ou castelhano (segundo ele, os dois únicos sinônimos perfeitos nessa língua). Refletiu sobre essas duas paixões em uma coluna semanal para a edição América do EL PAÍS, e plasmou centenas dessas sentenças de forma quase compulsiva nas redes sociais. Uma de suas máximas mais conhecidos era a de que "só havia dois tipos de jornalista, os rápidos e os que não são jornalistas". Mas deixou muitíssimas outras, para uma antologia que é urgente elaborar. A um jovem aspirante a repórter e a sacerdote explicou que “a bondade faz mau jornalismo”. A muitos outros que confundiam seu trabalho com o ativismo recordou que “os jornalistas dedicados a construir um mundo melhor podem se esquecer de como fazer um jornalismo melhor”.

Buscou extirpar entre os jovens repórteres latino-americanos “o chip colonial”, ou seja, o costume de "colocar gravata para escrever", e declarou guerra a quatro pragas: "A declaracionite, a politização, o governismo e a desconexão da informação internacional”. Embora fosse um francófilo declarado, reconhecia a superioridade da imprensa anglo-saxã. “Os ingleses não sabem fazer jornais ruins”, dizia. Advertia a seus alunos que, apesar da Internet e das redes sociais, era preciso continuar procurando a notícia na rua, e pouco se podia esperar de uma entrevista coletiva: “Nunca o propósito primordial de convocar uma foi dar uma notícia, embora acidentalmente se dê”. E, num mundo onde frequentemente se confunde opinião com informação e realidade com desejos, recordou-nos que “a luta contra os próprios preconceitos constitui uma boa parte do nosso profissionalismo”.

Advertia a seus alunos que, apesar da Internet e das redes sociais, era preciso continuar procurando a notícia na rua

Nos últimos anos, mostrava-se muito preocupado com a ênfase no jornalismo literário – “Existe, mas custa encontrá-lo” – e no jornalismo narrativo – “Se isso quer dizer história sem fontes, não contem comigo”. Temia que esses gêneros ocupassem o lugar do ensino das regras essenciais do ofício. Por outro lado, aproximou-se com genuíno interesse das novas tecnologias e incorporou uma perspectiva digital a suas aulas, porque o jornalismo eletrônico lhe parecia o de sempre, mas por outros meios. Com 172.000 seguidores, podia se gabar de ser o jornalista do EL PAÍS mais bem-sucedido no Twitter e, até que se viu sobrecarregado, foi anotando o nome de cada um desses seguidores numa caderneta, acrescentando o país de procedência.

Nós, que fomos seus alunos, não poderemos esquecer sua sabedoria, seu entusiasmo em compartilhá-la e seu senso de humor. Obrigado, Miguel Ángel, pelas lições, e obrigado também pelos bons momentos.

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