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“Só viram a minha roupa”, diz a mulher da foto do atentado de Londres

“Eu estava falando com minha família para dizer que estava bem”

Esta fotografia na ponte de Westminster durante o atentado de Londres do 22 de março foi utilizada como um argumento islamófobo
Esta fotografia na ponte de Westminster durante o atentado de Londres do 22 de março foi utilizada como um argumento islamófoboJaime Lorriman

Uma das fotografias do atentado de Londres foi usada nas redes sociais como argumento islamofóbico. Na imagem, captada pelo fotógrafo Jamie Lorriman, uma mulher caminha ao lado de um grupo de pessoas que estão socorrendo uma das vítimas. Muitas pessoas disseram que ela estava passando ali com indiferença, sem se importar com o que havia à sua volta. A mulher da foto reagiu por meio de uma nota divulgada pelo coletivo britânico Tell Mama, que registra e denuncia os ataques contra a comunidade muçulmana no Reino Unido. “Há pessoas que só viram a minha roupa”, disse a mulher, que estava falando com a família no momento em que a fotografia foi tirada. [Acompanhe as últimas notícias sobre o atentado de Londres].

A mulher, que não revelou sua identidade, afirma que se sente “chocada e totalmente consternada” com a maneira com que sua fotografia circulou nas redes sociais. Um dos tuítes islamofóbicos mais divulgados foi o do tuiteiro norte-americano Texas Lone Star, que se define na rede social como partidário de Donald Trump e patriota. Ele a compartilhou em dois tuítes distintos. Primeiramente, afirmou que a mulher estava andando “tranquilamente, olhando para o seu celular, enquanto ao lado havia um homem agonizando”. Depois, ele fez uma montagem com duas fotos, comparando a atitude “deles” com a “nossa”. Outros tuiteiros imitaram a fórmula, assim como alguns veículos de comunicação.

“Para as pessoas que interpretaram e comentaram os meus pensamentos naquele momento terrível, eu gostaria de dizer que não só me sentia devastada ao ver as sequelas de um ataque terrorista tão chocante. Mas também tive de lidar com o choque de ver a minha imagem sendo utilizada em todas as redes sociais por pessoas que não conseguiram ver mais do que a minha roupa e que tiram conclusões baseadas no ódio e na xenofobia”, acrescenta a mulher.

Na nota, ela afirma que os seus sentimentos naquela hora eram de “tristeza, medo e preocupação”. “O que a imagem não mostra é que eu já havia conversado com outras testemunhas para saber o que tinha acontecido, para saber se podia ajudar alguém, mesmo que várias outras pessoas já estivessem socorrendo as vítimas”, observa.

“No momento que a fotografia foi feita eu estava falando com a minha família para dizer que estava bem e que estava voltando do trabalho para casa. No caminho, ajudei uma mulher a chegar até a estação de Waterloo. Naquele momento, eu pensava nas vítimas e seus familiares”, afirma.

Duas fotografias de Toby Melville (Reuters) publicadas em EL PAÍS, nas que também se vê a transeúntes passando de longo, sem que se lhes tenha acusado de nada
Duas fotografias de Toby Melville (Reuters) publicadas em EL PAÍS, nas que também se vê a transeúntes passando de longo, sem que se lhes tenha acusado de nada

O melhor testemunho em relação à reação dessa mulher diante do atentado é do próprio autor da imagem, Jamie Lorriman. Ele afirmou ao The Guardian que ela “parecia muito preocupada”. Estava no meio de uma cena terrível. Sua expressão (na foto) me diz que estava horrorizada com o que via e simplesmente precisava sair daquela situação. Todos nós que estávamos ali fomos alertados para que deixássemos a ponte (de Westminster)”, comentou o fotógrafo. Ao final de sua nota, a mulher agradece a Lorriman por tê-la defendido nos meios de comunicação.

O coletivo Tell Mama é uma das instituições mais importantes de defesa dos direitos dos muçulmanos no Reino Unido. Mama é a sigla para Measuring Anti-Muslim Attacks (Registrando ataques a muçulmanos) e Tell se refere a uma de suas prioridades, que é de não deixar que episódios como este passem despercebidos.

Vemos aquilo que queremos ver

Jaime Rubio Hancock

Aqueles que compartilharam a imagem como sendo uma suposta demonstração do ódio que os muçulmanos teriam do Ocidente evidenciaram, na verdade, que, no fim das contas, todo mundo vê aquilo que quer ver. Trata-se de outro exemplo do que acontece quando nos deixamos levar pelo viés da confirmação.

Quando somos vítimas desse atalho mental, limitamo-nos a considerar apenas os dados que reiteram as nossas ideias e desprezamos as informações que as contradizem. Por isso, muitos nem sequer atentaram para as fotos semelhantes à da mulher quando o protagonista era um homem branco ou um casal de meia-idade. Não viram nada de estranho nessas imagens, embora nelas acontecesse, na verdade, a mesma coisa.

É claro que a foto da mulher (e as outras) dá margem a várias explicações possíveis, sem que tenhamos provas de nenhuma delas. Mas todas essas considerações dão na mesma: aceita-se o que é evidente, mesmo que não o seja. Neste caso, por exemplo, muita gente não leva em conta que o rosto da mulher expressa uma clara preocupação e que é absolutamente normal que depois de um atentado se pegue o celular e se avise aos outros que estamos bem. Muita gente viu apenas a cor da pele e o lenço que ela portava.

Como explica Michael Shermer em seu livro The Believing Brain, interpretamos a informação que nos chega para que ela se encaixe no nosso modelo de realidade, que quase nunca colocamos em questão. Texas Lone Star e aqueles que concordam com ele veem aquilo que querem ver e ignoraram o que querem ignorar.

É uma coisa que todos nós fazemos, sim, uma ou outra vez. O importante é ter consciência, com o objetivo de ao menos nos darmos conta disso e, na medida do possível, evitá-lo. Principalmente para não acabar linchando uma pessoa sobre a qual nada sabemos.

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