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“A Coreia do Norte é o experimento sociológico mais cruel já feito”

Em ‘George Orwell Foi Meu Amigo’, Adam Johnson, ganhador do Pulitzer, descreve o alto preço pago pelos habitantes de regimes totalitários

Luis Doncel
O escritor Adam Johnson, durante a entrevista em Berlim.
O escritor Adam Johnson, durante a entrevista em Berlim.PATRICIA SEVILLA CIORDIA

Adam Johnson (Dakota do Sul, 1967) insiste à fotógrafa para que desista: não vai obter uma imagem favorecedora dele. Não é fotogênico. Sugere-lhe como alternativa que volte de madrugada. No momento em que a raposa que ronda a área todas as noites urina sobre um holofote instalado no chão. E que então, com a vista para o lago berlinense Wannsee, retrate a luz fumegante. Essa imagem sim valeria a pena, diz, meio de brincadeira, meio a sério, o novo menino-prodígio da literatura norte-americana.

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Estamos na Academia Americana de Berlim, a poucos metros do local onde os nazistas decidiram aplicar aos judeus o que chamaram, num cruel eufemismo, de “solução final”. Esta instituição criada depois da II Guerra Mundial para melhorar as relações entre os dois países concede bolsas de seis meses a criadores de diversos âmbitos. Johnson é um deles. Nesta idílica paragem dos subúrbios da capital alemã, o multipremiado autor, prestes a completar 50 anos, recebe o EL PAÍS para falar de seu livro de contos George Orwell Was a Friend of Mine (“George Orwell foi meu amigo”). “Quando você escreve, se isola e tem tempo para se elevar acima de você mesmo. Mas isso não acontece ao falar. Então tentarei escolher bem as palavras para não soar como um idiota”, avisa ele quando o gravador começa a funcionar.

É precisamente aqui, na Alemanha, onde transcorre o texto que dá nome à edição em espanhol do livro, traduzido por Carles Andreu para a editora Seix Barral. Trata-se de uma história na qual um ex-agente de uma penitenciária da Stasi e seu cão, Prinz, descobrirão que o passado sempre volta. Depois de mergulhar no lado mais escuro da Coreia do Norte em seu aclamado The Orphan Master’s Son, Johnson analisa os resquícios do desastre comunista que ainda perduram da antiga República Democrática Alemã (RDA). Parece ter uma preferência especial por regimes totalitários.

“Em um sistema desumano, todos perdem sua humanidade. Também aqueles que prosperam e tiram proveito. São momentos nos quais cada pessoa passa por provações muito difíceis que a maioria das pessoas não tem de enfrentar”, afirma em sua elegante biblioteca, repleta de madeiras nobres, da Academia Americana.

Na tentativa de compreender aqueles que delataram ou torturaram, não há perigo de acabar justificando suas ações? “O risco real é de nos ver lá dentro. E comprovar que, em uma situação semelhante, poderíamos ter agido como eles”, responde.

Em seu novo livro, Johnson volta à Coreia do Norte, que define como "o experimento sociológico mais cruel já feito na Terra”. “É um sistema sobre o qual realmente não sabemos nada. Tudo ali funciona baseado em rumores. Em Pyongyang, todo mundo murmura. Não importa que seja mentira, porque, por não haver certezas, se torna real.” O assassinato do irmão do ditador Kim Jon-un em um aeroporto na Malásia lhe surpreendeu por duas razões. “Mostra que o líder se sente vulnerável. Mas também envia a mensagem de que, mesmo fora do país, você pode ser morto. Estão dizendo que não há escapatória.”

Sobre Donald Trump, Johnson ficou contente por estar fora dos Estados Unidos no “trágico dia” de sua vitória. “Trump é o símbolo de que existem duas Américas. Mas acredito que, se continuar se comportando de uma maneira tão horrível, vai acabar caindo. Tem uma pele muito fina para as críticas. O pior cenário é que ceda um pouco; e se mantenha justo no limite do que a América pode suportar de um presidente.”

Johnson desarma por sua amabilidade e simplicidade. Figura na reduzidíssima lista de autores premiados com um Pulitzer e com o National Book Award. Em meio a tanto glamour, diz que é grato por alguns prêmios que lhe permitem dedicar-se ao seu trabalho sem estresse para pagar pela comida ou o dentista dos três filhos. Mas também conhece casos de escritores cujos prêmios arruinaram suas vidas.

“Lembro-me do dia em que me ligaram com a notícia do Pulitzer. Minha esposa e eu estávamos em casa, olhando pelas janelas com vista para a baía de São Francisco. Ela me disse que gostava de nossa vida e que não queria mudá-la. Disse a ela que também não. Assim, concordamos em fingir que aquilo nunca havia acontecido.”

Em Dados Interessantes, um dos contos incluídos em George Orwell Foi Meu Amigo, o personagem que recria sua esposa se refere a si mesmo como “o maior imbecil que jamais ganhou um prêmio Pulitzer". Autobiografia ou autoironia? O escritor ri. “Todos podemos agir como idiotas. Ou não percebermos nada, por exemplo, quando alguém tão próximo quanto sua esposa está passando por uma doença grave”, acrescenta. Sabe do que fala. Nessa história, transportou à literatura o câncer sofrido por sua esposa.

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