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Na toca do lobo nazista

EL PAÍS reconstrói a vida oculta do oficial das SS Michael Karkoc com familiares, amigos e perseguidores

Michael Karkoc, em maio de 2014, na porta de sua casa em Mineápolis.
Michael Karkoc, em maio de 2014, na porta de sua casa em Mineápolis.Richard Sennott (AP)
Jan Martínez Ahrens

A barbearia de Tom Lane acolhe todo tipo de feras. Mais de 60 animais empalhados estão pendurados nas paredes junto aos espelhos. Entre os troféus, todos caçados pelo cabeleireiro, incluem-se um leão e uma pantera de corpo inteiro, gnus, antílopes, bisões, cascavéis e até um babuíno que recebe os visitantes em posição de ataque. Ante esse zoológico morto senta-se há décadas, uma vez por mês, Michael Karkoc. O carpinteiro é um bom cliente do estabelecimento, embora um pouco sem graça. Ao contrário dos outros frequentadores, ele não fala de esporte ou de filmes. Nem sequer das fofocas desse bairro operário do leste de Mineápolis. Simplesmente se acomoda na poltrona verde e começa a falar do que mais lhe interessa nesta vida: sua pátria ucraniana. Solta o discurso e deixa o trabalho com o seu amigo Tom. Curto em cima e raspado dos lados. O estilo da vida inteira, o mesmo que exibia quando chegou como imigrante aos Estados Unidos. E o mesmo que tinha há 75 anos, quando não era um aposentado de corpo frágil, e sim um implacável oficial das SS hitleristas conhecido como O Lobo. Uma fera muito mais perigosa que as abatidas pelo amigo Tom.

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Para as autoridades polonesas, Karkoc é a besta de Chlaniów. O comandante nazista que, no ocaso do mundo, matou mulheres, idosos e crianças, arrasou populações inteiras e depois desapareceu da face da Terra. Um aniquilador que esta semana foi identificado pela Promotoria “com 100% de certeza” e sobre o qual pesa uma ordem judicial de prisão. “Olhe, se ele voltar aqui, eu mesmo abrirei a porta. Deixem que morra em paz, já tem 98 anos”, diz o cabeleireiro.

Suas palavras são compartilhadas por muitos no bairro. Entre eles, seu vizinho Gordon, cuja janela foi consertada por Karkoc; o jovem Raymond, que algumas vezes o ajudou a atravessar a rua; alguns fiéis da igreja ortodoxa de São Miguel e São Jorge, cuja sacristia ele construiu; e até mesmo antigos camaradas das associações patrióticas ucranianas. Nesse pequeno universo de trabalhadores medianamente prósperos, com suas casas de dois andares com varandas para verem e serem vistos, ainda o consideram mais um bom cidadão do que o criminoso que horrorizou o mundo.

Karkoc na juventude.
Karkoc na juventude.AP

“Meu pai é um patriota. Só se importa com Deus, a Ucrânia e a sua família. Jamais militou nas SS. Isso é uma mentira absoluta, uma montagem da KGB”, diz, entre lágrimas, Andriy Karkos, filho do suspeito. Embora os depoimentos coletados por este jornal mostrem que há duas semanas ele ainda circulava pela cidade, seu filho afirma que ele tem demência e foi internado num centro de saúde. “Por essa falsa acusação, a deterioração se agravou”, afirma.

Com exceção da família, ninguém viu Karkoc nos últimos dias. Na casa onde morava, a única do bairro que só tem um andar, permanecem uma filha que mantém silêncio e um cachorro branco e brincalhão. Lá dentro não há ninguém mais. Apenas fotos de família, recordações ucranianas e uma grande mesa de madeira avermelhada que ele mesmo serrou. Dois homens para uma só vida. Ambos distantes, às vezes estranhos, mas que arrastam a mesma carga desde o final de 1939.

Barbearia aonde Karkoc costuma ir e que exibe os troféus de caça do dono.
Barbearia aonde Karkoc costuma ir e que exibe os troféus de caça do dono.
Salão frequentado por Karkoc.
Salão frequentado por Karkoc.

Naquela época, a Segunda Guerra Mundial dava seus primeiros passos, e nada parecia frear as bandeiras do Terceiro Reich. Motivado por seu ódio ao stalinismo, Karkoc abandonou o lar para se alistar no Exército alemão em terras polonesas. Com o uniforme da Wehrmacht, participou em 1941 da invasão da União Soviética (URSS). Uma loucura que deixou um saldo de 20 milhões de mortos. Durante o banho de sangue, Karkoc brilhou com luz própria. Foi promovido a tenente, recebeu a Cruz de Ferro e conquistou a confiança dos oficiais alemães. Nascia O Lobo, seu nome de guerra.

Levado pelas armas, regressou à sua pátria e fundou, com outros ultranacionalistas, a Legião de Autodefesa da Ucrânia. Uma unidade de 600 homens e subordinada, segundo as investigações, às SS – a tropa de elite de Adolf Hitler. Teve então início uma onda desenfreada que ainda persegue seus perpetradores.

A Legião fez do sangue a sua lei. Hipnotizada pela barbárie hitlerista, reprimiu os rebeldes, assassinou mulheres e crianças, aniquilou povoados inteiros. Uma espiral que alcançou Chlaniów, na região de Lublin (Polônia oriental). Ali, os partisans haviam matado um bom amigo de Karkoc, o oficial de ligação nazista Siegfried Assmuss. Os alemães exigiram resposta. A ordem foi “liquidar os civis”. A unidade comandada por Karkoc assumiu a tarefa.

A casa onde Karkoc morava, no noroeste de Mineápolis.
A casa onde Karkoc morava, no noroeste de Mineápolis.

Em 23 de julho de 1944, segundo a reconstrução das autoridades polonesas, os soldados irromperam na cidade. “Estávamos em transe: queimávamos, disparávamos, destruíamos”, declararia em 1967 um dos autores. No total, 44 homens, mulheres e crianças foram assassinados a sangue frio. Após o massacre de Chlaniów, vieram os de outros vilarejos menores. “Embora as provas só o vinculem a essa operação, há indícios de que tenha participado de muitas outras”, explica a este jornal Ephraim Zuroff, chefe mundial dos caçadores de nazistas do Centro Simon Wiesenthal em Jerusalém.

O alcance das represálias nunca será conhecido com exatidão. Tampouco o dano causado por Karkoc. Seus passos se perdem no caos que acompanhou o final da Segunda Guerra Mundial. Sabe-se que ingressou na 14a Divisão das Waffen-SS e que, em janeiro de 1945, recebeu o seu soldo. Os rastros desaparecem dos anos seguintes até que, em 1949, ele pede autorização para entrar nos EUA. Na época, o oficial das SS já era o outro Karkoc. Um viúvo com dois filhos que, ante as autoridades de imigração, declarou não ter cumprido o serviço militar e ter passado a guerra trabalhando com o pai. Nada foi detectado no registro – e a entrada lhe foi concedida.

Hitler diante de efetivos das SS, acompanhado por Himmler.
Hitler diante de efetivos das SS, acompanhado por Himmler.

Ao chegar aos EUA, Karkoc foi diretamente à rica e tranquila Mineápolis (400.000 habitantes). Apoiado por outros ucranianos, encontrou refúgio na igreja. Trabalhador, logo começou a despontar como carpinteiro. Primeiro reparando as casas dos vizinhos, depois na empresa Adolfson and Peterson. “Na fábrica ele começava às sete da manhã e terminava às três da tarde, comia em casa e depois trabalhava por conta própria. Todos os dias a rotina era essa. Não fez outra coisa na vida. Não é o monstro que dizem”, conta o filho Andriy.

Foi como carpinteiro que conheceu Nadia, outra imigrante ucraniana. Com ela se casou e teve quatro filhos. Todos frequentavam a missa. Os pequenos eram coroinhas; os pais, líderes da paróquia. Ninguém suspeitava. “Como íamos saber?”, diz um fiel. Karkoc era apenas mais um naquele grupo de estrangeiros que prosperava na América dos anos cinquenta e sessenta. O Lobo tinha ficado para trás. Ou era o que parecia.

O caçador de nazistas Ephraim Zuroff, em imagem de arquivo.
O caçador de nazistas Ephraim Zuroff, em imagem de arquivo.

Em 6 de maio de 1959, Karkoc jurou como cidadão dos EUA. Já nacionalizado, começou a frequentar cada vez mais os círculos de nacionalistas locais. Entrou na Organização para o Renascimento da Ucrânia. Seu ódio contra a ocupação soviética recrudesceu. Começou a agitar a bandeira, mobilizou os vizinhos, incutiu suas ideias nos filhos, mas ninguém viu a besta de Chlaniów. E se alguém viu, ficou em silêncio. “Veja, esse é um assunto muito complexo. Melhor deixar de lado”, dizem na Associação Nacional Ucraniana.

Com seu modo franco, seu trabalho de carpinteiro e seus bons ofícios paroquiais, o antigo SS era visto como um modelo. No final dos anos sessenta, a imagem da família apareceu na reportagem de um jornal local como um exemplo de respeito às tradições ucranianas. Karkoc não teve medo de ser fotografado. Nem teria duas décadas depois, quando, já aposentado, deixou-se entrevistar pela escola de jornalismo local para um especial sobre os sobreviventes.

Igreja ortodoxa de São Miguel e São Jorge, em Mineápolis, onde Karkoc construiu a sacristia e foi presidente paroquial.
Igreja ortodoxa de São Miguel e São Jorge, em Mineápolis, onde Karkoc construiu a sacristia e foi presidente paroquial.

Naquele tempo, admirava Ronald Reagan e havia colocado um retrato seu na estante favorita. Seu passado já estava longe demais. Tanto que, em 1995, publicou um folheto com suas memórias, recordando sua entrada no Exército alemão. Mas não mencionava seus laços com as SS. Nesse jogo de esquecimentos, em 2002 viajou ao seu povoado natal, na Ucrânia, onde financiou com a esposa um monumento aos mortos pelo nazismo.

Para os vizinhos, ele era uma verdadeira instituição. Um sujeito um tanto sem graça que só falava de Deus e da Pátria, mas que tinha dado tudo por essa comunidade de casinhas de madeiras e emigrantes da Europa Oriental. “Não reconheço em Mike a pessoa que o senhor diz que é, não acredito. E agora vá embora”, diz seu vizinho da frente.

O casal Karkoc no início dos anos oitenta.
O casal Karkoc no início dos anos oitenta.

Já idoso, sua vida seguia rumo a um doce ocaso quando repentinamente voltou ao começo. Seu nome integrava uma lista da 14a Divisão das SS, e ele mesmo, em suas memórias, reconhecia que havia pertencido à Legião de Autodefesa Ucraniana. Um especialista britânico ligou os pontos e, há três anos, uma investigação da AP tornou público o vínculo entre a besta de Chlaniów e o nonagenário. “Matou civis, e há indícios de que possa ter participado na repressão ao levante do gueto de Varsóvia”, recorda David Rising, cujas pesquisas levaram ao nome do carpinteiro.

A notícia abalou a pequena comunidade ucraniana de Minnesota. Mas foi muito além. A Promotoria alemã aventou um processo contra ele, mas recuou devido à sua idade e ao seu estado de saúde. O caso ficou no limbo até que, esta semana, Karkoc foi plenamente identificado – e um juiz polonês ordenou sua prisão. O passo seguinte será a extradição. Os parentes de Karkoc resistem, argumentando que ele sofre de incapacidade mental. “Se está doente, que seja examinado por médicos independentes. O que a família diz não basta. Não existe a menor dúvida de quem seja. E, pior, ainda restam outros como ele”, diz o caçador de nazistas Zuroff.

Henryka Jablonska, sobrevivente do ataque nazista a Chlaniów, onde mataram seu pai.
Henryka Jablonska, sobrevivente do ataque nazista a Chlaniów, onde mataram seu pai.AP

A Justiça começou a agir. Na Polônia, ainda sobrevive uma testemunha do horror de Chlaniów. Uma mulher de 92 anos que perdeu familiares e cuja casa foi queimada. Em Mineápolis, a cidade famosa pelo inverno rigoroso, foi localizado o homem que supostamente ordenou a aniquilação. Chegou a hora do julgamento. O Lobo já não tem aonde ir. Diante de si, só lhe resta o passado.

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