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O melhor agente duplo europeu só falhou numa missão: matar Franco

Enrique Bocanegra vence o prêmio Comillas de biografia com a primeira investigação sobre Kim Philby na Guerra Civil Espanhola

Guillermo Altares
À direita da imagem, Philby ferido durante a Guerra Civil.
À direita da imagem, Philby ferido durante a Guerra Civil.

Kim Philby, um inglês de classe alta, estudante de Cambridge, abriu mão de tudo para se transformar num agente soviético nos anos trinta. Uma das primeiras missões que recebeu foi viajar à Espanha durante a Guerra Civil e, assumindo o papel de jornalista no bando fascista, assassinar Franco. Não se sabe por que nunca executou a missão, nem sequer se chegou a receber a ordem. Sabe-se apenas que Franco sobreviveu ao conflito e que Philby se transformou no melhor agente duplo de todos os tempos, além do infiltrado mais nocivo para o serviço secreto britânico, o MI6. O jornalista Enrique Bocanegra (Sevilha, 1973) examinou durante quatro anos todos os documentos possíveis para tentar seguir os passos do espião na Espanha, um território que seus biógrafos quase não haviam explorado até agora. Seu ensaio, Un Espía en la Trinchera. Kim Philby en la Guerra Civil Española (um espião na trincheira. Kim Philby na Guerra Civil Espanhola), que ganhou o prêmio Comillas de história e biografia, concedido pela editora Tusquets, começa a ser vendido nesta terça-feira na Espanha.

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“Não sabemos o que aconteceu”, explica Bocanegra numa cafeteria de Madri perto da Academia de Cinema, onde trabalha há dez anos como coordenador de atividades culturais. “Sabemos que, no início de março de 1973, o controlador de Philby em Londres recebeu a ordem de enviar alguém à Espanha para espionar o Movimento Nacional, sobretudo a atividade dos militares alemães e italianos. Mas também deveria matar Franco. Philby tinha capacidade de cometer o magnicídio? Não havia recebido nenhum treinamento militar e não sabia usar armas, sem contar toda a proteção que rodeava Franco”, prossegue. Não se sabe se tentou e não pôde; se não se atreveu; ou se, como suspeita o autor, nunca chegou a receber a ordem. Esse é um dos tantos pontos obscuros da passagem de Philby pela Espanha.

Na Inglaterra, o pesquisador pôde encontrar muitos documentos e recuperar todas as matérias publicadas no The Times (uma missão difícil, já que não estavam assinadas, e os documentaristas do jornal britânico precisaram compará-las, uma a uma, com as mensagens originais que ainda conservavam). Nos arquivos espanhóis, contudo, não restou praticamente nenhum papel. Apenas poucos telegramas. Esse é outro mistério, porque Philby chegou a ser um jornalista muito famoso, enviado por um dos jornais mais influentes da época, o The Times. E – mais importante – foi condecorado por Franco. “[Os documentos] foram queimados nos anos sessenta quando se descobriu que Philby trabalhava para os soviéticos?”, pergunta-se o autor.

Philby chegou à Espanha em fevereiro de 1937, depois de o The Times enviar quatro correspondentes em oito meses de guerra, que acabaram se indispondo com os chefes de imprensa dos franquistas. Como na vida de todo espião, uma série de golpes de sorte permitiram que ele cumprisse a missão. Por um lado, graças aos contatos de seu pai, um aventureiro, diplomata e escritor chamado St John Philby, conseguiu que o jornal conservador britânico o contratasse – e depois ficasse muito contente com a sua cobertura. Outro golpe de sorte evitou que pilhassem o papel onde ele escondia os códigos durante uma busca. O terceiro transformou-o no único sobrevivente de um obus que atingiu o carro em que viajava com três colegas em Caudé, na frente de Teruel. A propaganda fascista utilizou a morte dos jornalistas estrangeiros e alçou Philby à categoria de herói. Tanto que ele foi recebido e condecorado por Franco. Isso permitiu que tivesse toda a liberdade possível – que tampouco era tanta – dentro das fileiras dos golpistas.

Bocanegra contou com a ajuda de dois biógrafos de Philby, dois clássicos do jornalismo britânico: Patrick Seale e Phillip Knightley. Ambos morreram enquanto ele escrevia o livro. Os dois, relata, foram muito generosos com seu tempo e seus conhecimentos, mas também com os documentos. Seale, amigo de Philby quando ambos se encontravam em Beirute, confessou a Bocanegra que estava muito doente enquanto este o entrevistava em sua casa de Londres. “Disse-me que precisava ir ao hospital e me deixou sozinho em sua casa, com uma maleta que continua numerosos documentos sobre Philby. Fiquei ali o dia inteiro fotografando papéis, como tinha feito o espião tantas vezes ao longo da vida”, conta.

O livro não apenas segue os passos de Philby durante a Guerra Civil; também traça um retrato da espionagem comunista nos anos trinta, quando os agentes de Stálin, como Olexander Orlov, tentavam ampliar, sem piedade, a dominação soviética sobre os republicanos. No final, eles mesmos se encontraram ameaçados pelas mesmas depurações que haviam ajudado a promover. Mas nada disso, nem sequer o pacto entre a Alemanha nazista e a URSS, fizeram Philby romper seu compromisso com o comunismo. A Espanha foi só o começo.

A última viagem

"Normalmente, os agentes duplos aguentam cinco anos, no máximo dez. Ele sobreviveu 30", diz Enrique Bocanegra sobre a extraordinária carreira de Kim Philby (1912-1988) na espionagem. Como não poderia deixar de ser para alguém que baseou toda a existência na mentira e no engano, os mistérios sobre sua vida ainda são numerosos, embora haja diversos livros sobre ele. É o caso do excelente Un Espía Entre Amigos (um espião entre amigos), de Ben Macintyre. Philby integrou o círculo íntimo de Cambridge, um grupo de jovens que, por idealismo, decidiram espionar para Moscou. Foi o mais hábil de todos e o último a ser descoberto, conseguindo driblar os interrogadores do MI6 quando tudo indicava que era um traidor, até finalmente escapar para a URSS.

Quando foi despedido do serviço secreto britânico, em 1951, pela suspeita que pesava sobre ele após a fuga de dois de seus colegas de Cambridge (Guy Burgess e Donald MacLean), Philby ficou livre porque Londres não encontrou provas de que fosse agente duplo. Assim, em maio de 1952, ele fez uma viagem de um mês à Espanha que continua sendo um mistério. “Com quem manteve contato? Onde se alojou? Que lugares visitou? Por que alguém na sua situação, sem trabalho, sem dinheiro, suspeito de ser comunista, viajou à Espanha de Franco, o país mais pobre e atrasado da Europa? Foi uma operação de inteligência?” Outro mistério dentro de um enigma.

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