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Só existem dois tipos de comida: boa e ruim

Por que, se eu me colocar como um aficionado por botecos, eu preciso abominar a restauração de vanguarda?

Gaspacho amarelo defumado, espuma de manga e quiabo tostado do menu do restaurante Oro, do chef Felipe Bronze.
Gaspacho amarelo defumado, espuma de manga e quiabo tostado do menu do restaurante Oro, do chef Felipe Bronze.Instagram/Felipe Bronze

Não sou capaz de apontar o meu prato favorito. Não consigo definir o “meu tipo” de restaurante. Posso discorrer sobre minhas preferências, sobre as melhores coisas que já comi. Mas não tenho como simplesmente eleger, em caráter sumário, o melhor momento, a melhor garfada. Também não tenho “o meu bar”, a “minha mesa”. Não é por insegurança nem indecisão.

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Gosto de muitas coisas diferentes. Tenho vontade de várias delas, em dias e horas variados. E seria muito triste se eu não pudesse transitar por situações e escolhas as mais diversas. Depois de anos comendo com método (ou apenas me divertindo), estudando, escrevendo a respeito, cheguei a conclusão que existem dois tipos de comida: a boa e a ruim. Não digo por um prisma simplista. Mas apenas para reforçar que o bom (e seu contrário) podem se manifestar em todos os estilos. Há pratos criativos deliciosos, outros completamente inexpressivos; tira-gostos populares apetitosos, outros pesadões e indigestos; massas inesquecíveis, outras incomíveis... Minha lista de prediletos é extensa, múltipla, mutante. E nunca está fechada: acalento um vívido otimismo de que sempre haverá algo excepcional para se conhecer.

Para citar uma frase à qual recorro com frequência (criada pelo temperamental e brilhante Murilo Felisberto), não sou escravo das minhas opiniões. Posso rever conceitos, ir adiante, recuar. Tento, por exemplo, relembrar meus gostos na virada do século, quando eu ainda não escrevia sobre comida. E percebo como várias das preferências de vinte anos atrás se transformaram, em relação aos apetites atuais. Incoerência? Não, direito à mudança.

Sendo o mundo da comida tão amplo, tão rico, confesso que fico surpreso, por outro lado, quando a manifestação do gosto é restrita, excludente. Binária, na linha “se sou fã deste, não posso apreciar aquele”. Se nossas playlists contêm rock, música brasileira, jazz, erudito, canções francesas, temas folclóricos e congêneres, por que temos de fazer opções sectárias?

A chef Roberta Sudbrack apontou um esgotamento de uma fórmula, o menu-degustação. O assunto rendeu, suscitando respostas, como a do chef Felipe Bronze

Por que, por exemplo, ao me colocar como um aficionado por botecos, eu preciso automaticamente abominar a restauração de vanguarda? O fato de idolatrar a cucina italiana me impede de me deliciar com cocina espanhola?

Sempre tive sérias desconfianças com o tal do pensamento único. Um só caminho para a política, um só horizonte para a economia, uma única opção para o gosto, uma verdade só. Da mesma forma, não consigo me conformar quando vejo ondas do tipo “agora, todo restaurante precisa dispor de um sommelier”; ou “o serviço formal de garçons saiu de moda”; ou “tem de ser tudo orgânico”; “não há mais espaço para o menu-degustação”. Seria muito óbvio dizer, simplesmente, que tem momento para tudo?

Há alguns dias, a chef Roberta Sudbrack tornou pública sua decisão de fechar seu prestigiado restaurante, no Rio de Janeiro, e enveredar por modelos mais simples. Apontou, entre outras coisas, aquilo que ela enxergava como um esgotamento de uma fórmula, o menu-degustação, e o cansaço com os ditames da alta gastronomia. O assunto rendeu, suscitando inclusive respostas igualmente públicas, como a do chef Felipe Bronze – um entusiasta de menus provocativos e inovações. Os dois têm seus pontos. E eu creio que, antes de tudo, é necessário reconhecer que certas práticas e tendências vinham se tornando exageradas.

Da minha parte, quero continuar a comer menus longos, com serviço caprichado, mas só quando eles fizerem sentido. Quando eu estiver disposto a dedicar instantes a mais à mesa, dando atenção a uma sequência de criações, ouvindo as explicações sobre cada passo da refeição. O que atrapalha uma degustação não é o conceito, em si (sem falar no preço). É a vulgarização da proposta, algo se alastrou, por um tempo, em tudo que era estabelecimento – não, não precisamos de menus-confiança de brigadeiro, de massas, de churrasco...

Pelo mesmo raciocínio libertário, quero continuar provando novidades, clássicos, frituras de bar, pratos inventivos, iguarias finas. Sou partidário de que nosso coração (ou estômago, ou cérebro; eleja o órgão) é grande o suficiente para abrigar o que vier, o que agradar. O que se encaixar no seu bolso, na sua fome, no seu tempo. Para os aficionados, eu sei, a comida pode provocar discussões vigorosas – e, muitas vezes, mais pela tentativa de imposição do gosto do que pela sua discussão. Mas vamos brigar para que as coisas sejam boas, não apenas para ter razão. Sejamos plurais, jamais binários. Se muito, sejamos duais: arroz e feijão, baião-de-dois, queijo e goiabada, foie gras e Sauternes...

Luiz Américo Camargo é comentarista e consultor gastronômico, especializado em eventos e produção de conteúdo. Foi um dos fundadores do Paladar, marca de gastronomia de O Estado de S. Paulo. É também colunista do jornal Zero Hora.

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