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Meio século da irrupção épica e edipiana do The Doors

No começo de 1967 foi lançada ‘Break on Through’, o primeiro ‘single’ de um disco revolucionário pelo som e pela concepção dionisíaca

Diego A. Manrique
The Doors: de esquerda a direita, o guitarrista Robby Krieger, o cantor Jim Morrison, o baterista John Densmore e o teclista Ray Manzarek, em uma atuação em Nova York, em junho de 1967.
The Doors: de esquerda a direita, o guitarrista Robby Krieger, o cantor Jim Morrison, o baterista John Densmore e o teclista Ray Manzarek, em uma atuação em Nova York, em junho de 1967.Don Paulsen / Michael Ochs
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Lembro-me nitidamente a primeira vez que ouvi o The Doors, no início de 1967. Num de seus programas de rádio, o apresentador tocou Break on Through. Do outro lado das ondas, a sensação imediata foi: “Isso soa diferente”.

De que maneira soava diferente? Bem, a bateria de John Densmore em Break on Through seguia padrões de bossa nova, era possível imaginar que por trás havia um aspirante a tocar jazz. O órgão Vox Continental de Ray Manzarek era um instrumento de exploração, distante das ressonâncias religiosas do Hammond então dominante; ainda não sabíamos que usava um tecladinho Fender Rhodes para imitar o baixo, embora em algumas músicas foi acrescentado um baixo de verdade. A guitarra de Robbie Krieger era limpa, lírica, econômica: ele a tocava sem palheta e se percebia que tinha havia estudado violão espanhol. E também havia Jim.

Assim se forjou o som

Os esboços prévios ao primeiro álbum mostram os Doors leves, com Manzarek tocando piano e Morrison que ainda não tinha encontrado seu vozeirão. É possível imaginar que endureceram seu som durante a temporada, quando enfrentaram o público festivo do Sunset Strip, aumentando o repertório com a febril Gloria, da banda Them. No entanto, em agosto de 1966, quando entraram no estudo para a Elektra Records, ainda estavam um pouco verdes.

Foi o produtor Paul A. Rothchild que os deixou firmes. Rothchild, que já tinha lidado com grupos problemáticos, como a Paul Butterfield Blues Band, era uma figura de tolerância, mas também exercia sua autoridade. Especialista em enrolar cigarros de maconha, explicou-lhes que não queria uma banda de bar e muito menos um combo lounge, tocando jazz com poesia cantada. Eles deveriam olhar para dentro de si mesmos, encontrar seus demônios e exorcizá-los. Foi isso o que fizeram.

Morrison usava a voz de barítono de modo quente, vocalizando com claridade. Mais Frank Sinatra do que Elvis Presley, para citar duas de suas influências. É fácil entender o fato de que os hipsters de Nova York, reunidos em torno de Lou Reed e do Velvet Underground, o tenham detestado desde o início. Com sua beleza, seus traços angelicais e sua arrogância, parecia um anúncio das virtudes da raça californiana. Exceto que não havia tal coisa: nascido no seio de uma itinerante família militar, Jim não tinha raízes até se estabelecer em Los Angeles.

Um setor importante da crítica musical, começando com o patriarca Robert Christgau (“Morrison soa como um idiota”), atacou imediatamente o The Doors. Suspeito que ficava evidente que os Doors tinham estudado: vinham da UCLA, Universidade da Califórnia em Los Angeles. Mostravam uma munição intelectual proporcionada por seus professores: invocavam desde o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud aos textos de Aldous Huxley (As Portas da Percepção deu o nome à banda). Tinham conexões com áreas obscuras da cultura europeia, com acertos como recriar Alabama Song, uma peça provocante de Bertolt Brecht e Kurt Weill.

Eram tidos como pedantes, mas os Doors eram simples filhos da contracultura, com o fascínio obrigatório pela Índia. Manzarek e Densmore se conheceram em aulas de meditação transcendental; sua peça mais épica (e edipiana), The End, correspondia aos esquemas do que então se conhecia como raga rock, música inspirada por obras de Ravi Shankar.

Amor pelo ‘blues’

Também se apreciava o carinho pelo blues, comum àquela geração. Com uma diferença: enquanto a maioria de seus contemporâneos usava o blues para exibições instrumentais, Morrison buscava seu substrato, o impulso erótico. Isso tomou forma em suas versões da insinuante Back Door Man, de Howlin’ Wolf, ou na fálica Crawling King, de John Lee Hooker.

Numa de suas melhores ideias, Morrison descreveu os Doors como erotic politicians (“políticos eróticos”). Ou seja, eram politizados, como boa parte da juventude norte-americana, mas sua principal preocupação era o erotismo como forma de conhecimento, como ruptura radical com a sociedade herdada de seus pais. Depois desse primeiro single com Break on Through (to the other side), sua declaração de intenções, causaram impacto com o segundo single tirado de The Doors.

Light My Fire alcançou o número um numa edição truncada, que eliminava o sinuoso desenvolvimento de órgão e guitarra que parecia dramatizar a intensa sessão de drogas e sexo sugerida pela letra. Esse corte foi a única concessão aceita por Jim Morrison, que cantou o texto original no Ed Sullivan Show ignorando a proibição dos responsáveis pelo programa. Aquela banda, intuíamos, seria refratária aos compromissos.

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