_
_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Por quem tocam os alarmes

Quando as sirenes dos presídios fazem ecoar no país seu sinal de alarme, é para todos nós e por todos nós

Detentos do presídio de Alcaçuz, na região metropolitana de Natal, ocupavam os telhados da detenção na terça-feira.
Detentos do presídio de Alcaçuz, na região metropolitana de Natal, ocupavam os telhados da detenção na terça-feira. Ney Douglas (EFE)

Antes de tudo, um minuto de silêncio. Estamos assistindo, há algum tempo, o terrível espetáculo da torpeza e do horror. No palco não estão apenas os personagens psicopáticos na arte de sublimar a vida, como definiu Freud. A vida mesma se tornou tragédia e a morte está na cena cotidiana. Há muito ficaram para trás os limites do intolerável.

Para conseguirmos ver e perceber, ouvir e compreender a violência extrema nas prisões precisamos ter clareza de que os massacres não estão apenas mostrando e dizendo algo para nós, mas estão, sobretudo, falando algo de todos nós.

Mais informações
Tamanho de facções em Roraima cresce seis vezes em dois anos ante inação do Estado
“Pelo plano de Temer, a crise nas cadeias não vai se resolver nem a longo prazo”
Escalada da violência penitenciária ameaça atingir outros Estados do Norte

Os massacres nos dizem que somos impotentes. Ao reconhecermos essa verdade, antes mesmo de “enfrentar o problema”, podemos retomar a racionalidade que nos foi subtraída ao longo do tempo, voltando, por um momento que seja, ao abrigo silencioso da nossa herança humanista e aos valores que baseiam as atitudes que nos constituem como humanidade.

Primeiro de tudo, não tenhamos medo de ficar sem palavras. Quebrar o silêncio com palavras desprovidas de sentido e compromisso pode agravar ainda mais o prejuízo, que já é imenso.

A psicopedagoga argentina Alicia Fernández, no seu livro “A Atenção Aprisionada”, advertia que estar no silêncio não é o mesmo que estar em silêncio, muito menos se calar: “habitar o silêncio para não silenciar”.

Como referência, a grande e saudosa mestra evoca a inestimável beleza e perturbadora clareza de uma cena do filme "Rapsódia em Agosto", de Akira Kurosawa. É o encontro de duas amigas que haviam perdido seus maridos nos bombardeios de Nagasaki. Sentam-se, uma junto à outra, e compartilham um chá em silêncio. Os netos espiam o encontro pela janela e ao final, assombrados, perguntam para a avó o porquê de não falarem nada durante toda a visita. A avó explica que “só em silêncio podem comungar alguns sentimentos para os quais não há palavras”. Foi o que também ensinou - em ato - o Papa Francisco, com sua silente oração ao visitar Auschwitz, da memória cruel do campo de concentração nazista. Arte e fé se encontram e se tocam, na humildade do silêncio, produzindo fagulhas de esperança para nossas almas ensurdecidas pelo barulho de tantas guerras.

Janeiro de 2017 é quando soam todos os alarmes. Mas essa sangrenta rapsódia vem sendo escrita há muito tempo, e não é possível ouvi-la sem lembrar do abandono, descaso e negligência dos poderes públicos ao longo de todos esse anos. A recusa em nacionalizar o debate sobre segurança pública e em criar um sistema integrado e duradouro - como o da Saúde e o da Educação, apesar de suas falhas - tem persistido por muito tempo. E a causa de tamanha negligência, todos sabemos, é política e eleitoreira: tudo para não perder “popularidade”.

Mas essa sangrenta rapsódia vem sendo escrita há muito tempo, e não é possível ouvi-la sem lembrar do abandono, descaso e negligência dos poderes públicos ao longo de todos esse anos.

O diagnóstico já vem sendo feito há muito tempo por quem conhece o problema em profundidade, pessoas que agora, mesmo cumprindo o dever de apresentar suas contribuições na mídia, sequer estão sendo chamados pelo governo para ajudar a construir saídas viáveis. O governo parece ignorar a contribuição da sociedade diante de uma crise com esse contorno e proporção.

Não foram poucas as oportunidades em que a sociedade ajudou o Estado com ações, propostas e experiências valiosas, como a de Betinho e Dom Mauro Morelli no combate à fome, ou de Ana Maria Peliano e Ricardo Paes de Barros na elaboração de políticas voltadas para a superação da extrema pobreza. Foi com a participação de estudiosos e a contribuição da sociedade que governos e organismos internacionais encontraram caminhos para o tratamento do HIV/AIDS, que à época parecia não ter solução. Foi a partir do esforço integrador de grupo de renomados economistas que o país conseguiu sair de uma situação crônica de instabilidade econômica na década de 90. Da mesma forma, foi assim quando decidimos enfrentar as inaceitáveis taxas de desmatamento da Amazônia e pudemos contar com a colaboração dos governos estaduais, da comunidade científica e da sociedade, constituindo um plano de prevenção e controle que possibilitou a redução da derrubada de florestas em 80%, por cerca de dez anos consecutivos.

Existem muitos homens e mulheres comprometidos com causas e não com projetos de poder pelo poder. Quando chamados de forma honesta e sincera, nunca negam sua contribuição e suas valiosas ideias, mesmo que, eventualmente, de forma reservada. Pude ver isso durante as campanhas em que participei como candidata à Presidência da República.

Em 2010, sob a coordenação do antropólogo Luiz Eduardo Soares, fizemos um seminário para estabelecer os eixos programáticos de uma política integrada de segurança pública para o país, com a participação de especialistas e secretários de segurança, pessoas com conhecimento teórico e experiência prática nos governos de vários Estados e dos mais diferentes partidos políticos e orientações ideológicas.

Debates assim me motivam a recusar a polarização do embate político e insistir na ideia de que é possível governar com as melhores contribuições da sociedade e dos partidos.

Será que a perda de dezenas de vidas e as cenas sangrentas das execuções não são suficientes para silenciar a tagarelice política e nos fazer refletir com humildade?

Será que os massacres nos presídios em vários Estados não deixaram evidente que esse é um problema nacional que merece a máxima atenção de todos? Será que a perda de dezenas de vidas e as cenas sangrentas das execuções não são suficientes para silenciar a tagarelice política e nos fazer refletir com humildade?

O governo federal anunciou a intenção de criar uma comissão permanente de acompanhamento da crise nos presídios. Urge que ela saia da mera intenção e ganhe mandato para enfrentar os graves e inaceitáveis problemas da segurança pública do país. O governo precisa ter a humildade de admitir-se insuficiente, carente de ajuda e até desprovido de razão. Afinal, voltando a Freud e seu instigante texto Personagens Psicopáticos no Palco, quem não perde a razão em certas circunstâncias não tem nenhuma razão a perder.

A complexidade da situação atual exige um trabalho conjunto para consolidação de uma política criminal e prisional mais eficiente e comprometida com a dignidade humana. A segurança pública não pode ser tratada apenas como atribuição dos Estados. O governo federal precisa assumir responsabilidades por meio de uma política nacional de segurança pública, capaz de integrar Estados, órgãos do sistema de segurança e organizações da sociedade civil.

Hoje, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, cerca de 622 mil presos (Infopen/dezembro 2014). No período de dez anos, de 2004 a 2014, a população prisional aumentou em 80% e o número de vagas nos presídios ficou estável, resultando num déficit de mais de 250 mil vagas. Roraima e Amazonas, dois dos Estados onde houveram massacres nas últimas semanas, têm as maiores taxas de ocupação no sistema prisional do país; não foi por acaso que neles surgiu o furo no tumor que revelou o apodrecimento do sistema.

Diagnósticos, alertas e propostas não faltaram ao longo de todos esses anos, em que as políticas públicas na área de segurança foram se decompondo. Aos governos faltou o básico: silêncio para ouvir e compromisso para agir.

Grandes fracassos, sejam eles políticos, econômicos, sociais ou todos ao mesmo tempo, como os que vivenciamos agora, nunca acontecem de uma hora para a outra. Resultam de um descaso prolongado e uma omissão amadurecida em sucessivos governos, em cumplicidade com parcelas privilegiadas da sociedade. Sua descontinuidade, entretanto, é possível e acontecerá se ouvirmos os sinais de alarme - depois de termos ignorado os sinais de alerta.

Precisamos aprender com o belo poema de John Donne que os sinos dobram por todos nós. Traduzindo para a cruel realidade de nossos dias, quando as sirenes dos presídios fazem ecoar no país seu sinal de alarme, é para todos nós e por todos nós.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_